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Pele negra enfim começa a receber atenção da ciência

Iniciativas ao redor do mundo chamam a atenção para as necessidades não atendidas da população preta e parda, propondo soluções especialmente para elas

Por Larissa Beani
Atualizado em 21 ago 2024, 10h47 - Publicado em 21 ago 2024, 09h53
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  • Uma imagem pode até falar mais do que mil palavras, mas sua ausência também tem muito a dizer. Se não entendeu, Chidiebere Ibe desenha.

    Desde 2020, o estudante de medicina nigeriano tem criado ilustrações cientificamente acuradas para retratar pessoas negras afetadas por diferentes condições médicas — principalmente as dermatológicas.

    “Nossa pele é o local onde muitas doenças podem se manifestar, e elas se apresentam de diferentes maneiras a depender do tom de cada pessoa”, explica o ilustrador em uma de suas palestras ao redor do mundo.

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    É o caso de vários tipos de psoríase e dermatite, que já foram tema dos desenhos de Ibe. Hoje, os trabalhos do nigeriano compõem o acervo da Illustrate Change, a maior biblioteca de imagens médicas voltada para aumentar a representação de pacientes pretos e pardos em publicações da área da saúde.

    O projeto foi criado a partir da necessidade de formar profissionais aptos a identificar as manifestações de doenças diversas em diferentes matizes de pele. Pudera: segundo um estudo americano, nem 5% das ilustrações em livros técnicos representam essa população.

    Felizmente, outros pesquisadores estão trabalhando para extinguir essa lacuna — e o movimento já se desdobra com soluções para atender às demandas do público.

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    + Leia também: Por que precisamos pensar mais na saúde da população negra?

    Lacuna de conhecimento começa a ser preenchida

    Nesse contexto, especialistas da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, publicaram na renomada revista científica The New England Journal of Medicine um atlas visual de condições cutâneas em diferentes tons de pele.

    A ideia é tornar a dermatologia uma especialidade médica mais inclusiva e assertiva, capacitando profissionais para agilizar o diagnóstico e tratamento de pessoas não brancas.

    O banco de dados busca refletir a real diversidade da sociedade, reparando disparidades históricas no atendimento a pacientes negros, indígenas, asiáticos e de outras minorias. No Brasil, há muito trabalho a ser feito.

    De acordo com um levantamento realizado pelo Grupo L’Oréal, 44% dos dermatologistas do país se sentem parcialmente ou pouco preparados para cuidar de todos os tipos de pele e cabelo.

    É um cenário absurdo se considerarmos que, segundo o Censo 2022, 55,5% da população se autodeclara preta ou parda. A pergunta que fica é: como as queixas de 112,7 milhões de brasileiros são recebidas em consultórios e hospitais de norte a sul?

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    + Leia também: Saúde não tem cor: campanha alerta para impacto do racismo na assistência

    “Precisamos levar a essas pessoas a merecida empatia e atenção para o diagnóstico e o tratamento de doenças de pele”, diz a dermatologista Katleen da Cruz Conceição, que advoca pela excelência e equidade na assistência.

    Membro da Skin of Color Society, entidade pautada pelo atendimento de minorias, ela coordena o primeiro curso de especialização em pele negra do Brasil, na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.

    Em setembro, durante o 77º Congresso da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), a médica lançará, pela editora Manole, o primeiro livro focado nessa especialidade (Dermatologia para Pele Negra – clique aqui para comprar em pré-venda). Um grande passo para projetar holofotes sobre a pele negra.

    Cuidados para a pele negra

    As particularidades da pele preta devem ser levadas em consideração na hora de definir quaisquer cuidados preventivos ou terapêuticos.

    Uma das formas de entender as necessidades específicas de diferentes tons de pele é olhando para a escala de Fitzpatrick, que propõe uma classificação a partir de como esse tecido reage à exposição solar.

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    Baseados nesse critério, existem seis perfis distintos — os fototipos. Os fototipos 1 e 2 referem-se a peles brancas, cujas marcas da agressão dos raios ultravioleta (UV) são mais visíveis, com maior predisposição a queimadurasJá os fototipos 3 ao 6 abrangem de peles morenas a negras, em que as lesões pela radiação do sol são menos evidentes.

    Isso se deve ao fato de esses perfis terem uma maior presença de melanina na epiderme, a camada superficial da pele.

    + Leia também: Melanina: e se esse pigmento que dá cor e protege a pele virasse um creme?

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    Fotoproteção em dia ajuda a prevenir o surgimento de manchas e de câncer de pele (Delmaine Donson/Getty Images)

    Pessoas negras também devem se proteger do sol

    O pigmento age como uma barreira natural contra os raios ultravioleta, evitando que a radiação danifique o DNA das nossas células e cause prejuízos que vão desde o envelhecimento precoce até um maior risco de câncer cutâneo.

    Calcula-se que, entre pretos e pardos, a presença mais intensa de melanina possa promover um fator de proteção solar (FPS) natural equivalente a 13,4, enquanto a pele branca tem um escudo nato de apenas 3,4. Mas isso não significa que negros estejam livres dos males causados pelo excesso de exposição solar.

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    “Existe um mito de que pretos e pardos não precisam de fotoproteção”, alerta Jaci Santana, dermatologista que se dedica ao estudo da pele negra na SBD. A melanina bloqueia apenas uma pequena parcela de raios UVB e nos deixa à mercê de outros tipos de radiação.

    “Essa população sofre mais com os raios UVA e com a luz visível, que penetram mais profundamente a pele e são responsáveis por provocar manchas”, explica Jaci.

    Para estar minimamente protegido do sol, é necessário usar filtro solar com, no mínimo, FPS 30 e PPD 20 — o primeiro nos protege da radiação UVB e o segundo, da UVA. “A escolha de protetores com cor vai poupar a pele também da luz visível”, orienta Camila Rosa, especialista em dermatologia oncológica pelo Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

    + Leia também: Protetor solar: 10 erros e mancadas mais comuns ao passar

    Necessidades não atendidas

    Encontrar produtos no mercado com todas essas características, porém, pode ser um desafio. Segundo pesquisa realizada pela consultoria NielsenIQ, de 110 fabricantes de protetor solar no Brasil, apenas quatro possuíam produtos específicos para o público afro.

    Para ajudar a mudar esse cenário, pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) patentearam um material revestido de melanina que pode conferir ao produto todas as características necessárias para salvaguardar os afrodescendentes.

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    A fim de estimular o mercado e reconhecer iniciativas inovadoras como essa, o Grupo L’Oréal no Brasil criou o prêmio Dermatologia + Inclusiva, que bonificará quatro projetos que desenvolvam soluções para a pele, o couro e a fibra capilar de pessoas negras.

    “No Brasil, temos em nossa população 55 tons de pele, e não podemos generalizar que todos os tipos de pele negra são iguais”, ressalta Roberta Sant’Anna, diretora-geral da divisão L’Oréal Beleza Dermatológica.

    + Leia também: Pele a salvo: como se cuidar contra o câncer

    Câncer de pele em pessoas negras

    Ainda para garantir a integridade da pele negra e afastar o risco de malignidades, é importante frisar que, apesar de pessoas pardas e pretas não serem as mais afetadas por tumores cutâneos, elas podem ser vítimas de piores desfechos.

    De acordo com estimativas americanas, pessoas negras encaram o triplo de risco de serem diagnosticadas com melanoma em estágio avançado. Esse é o tipo de câncer de pele mais grave, com risco de se espalhar por outras partes do corpo. Além disso, pretos e pardos com esse tumor têm uma taxa de sobrevida em cinco anos de 71%, enquanto brancos chegam a 94%.

    A população afro é a mais suscetível ao melanoma lentiginoso acral, que aparece em áreas mais claras e pouco expostas ao sol, como a palma da mão, a sola do pé e as unhas.

    Manchas e dermatites

    A radiação solar, porém, não é o único fator a provocar manchas e estragos. “Podemos ter marcas mais escurecidas (hipercromias) ou claras (hipocromias) devido a processos inflamatórios ou cicatrizantes”, explica Camila. “Qualquer procedimento ou interferência traumática poderá estimular a produção de melanina, que já é alta nessa população.”

    Em geral, as manchas costumam estar associadas à acne e ao melasma. Para contorná-las, o dermato deverá avaliar em consulta fatores de risco e as melhores técnicas de tratamento.

    Outra doença fortemente associada a prejuízos na pele é a dermatite atópica, uma inflamação crônica na epiderme que é influenciada por fatores genéticos e ambientais.

    + Leia também: Tratamentos para dermatite atópica exigem cuidado integral, alerta médico

    Trata-se de uma enfermidade bastante prevalente durante a infância e a adolescência. Afrodescendentes estão mais suscetíveis a desenvolver casos graves não apenas por características próprias que predisponham a isso, mas também pela demora no diagnóstico e encaminhamento para o tratamento da condição.

    Pensando nisso, a farmacêutica Eli Lilly está realizando estudos em humanos para testar soluções farmacológicas mais eficazes para pessoas com pele escura.

    Em ensaios clínicos de terceira fase, o anticorpo monoclonal lebriquizumabe mostrou melhorar significativamente os casos de dois terços dos participantes. Quatro a cada dez relataram uma redução quase total de lesões causadas pela dermatite atópica e mais da metade se sentiu livre de coceiras.

    “A população estudada foi historicamente sub-representada em ensaios clínicos, o que significa que faltam dados relativos ao tratamento desses pacientes”, sublinha, em comunicado à imprensa, Andrew Alexis, dermatologista americano e líder da pesquisa.

    Cicatrização

    Para além dos distúrbios que levam a manchas e prurido, afrodescendentes também precisam ter cuidados redobrados com a cicatrização.

    “Isso porque os fibroblastos, principais células responsáveis pela recuperação da pele após traumas e cortes, são maiores, mais numerosos e mais reativos nessa população”, explica a farmacêutica Cynthia Nara Oliveira, fundadora da marca Pele Rara, que desenvolve formulações com foco na regeneração de peles sensíveis.

    + Leia também: Biocurativo inteligente feito de células-tronco trata lesões e queimaduras

    Essas características ajudam a explicar outra tendência de peles escuras, que é a do desenvolvimento de queloides e cicatrizes hipertróficas, saliências advindas da hiperestimulação das células locais durante o processo de cicatrização de feridas.

    Soma-se a isso uma menor atuação da enzima colagenase entre afrodescendentes. Ela que é a responsável por degradar o colágeno, que mantém a pele firme e elástica, com aspecto mais jovem.

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    A pele merece atenção especial na velhice (Leland Bobbe/Getty Images)

    Envelhecimento da pela negra

    O conjunto de todos os traços citados, desde a fotoproteção até uma maior atuação do colágeno, justifica por que os sinais da idade demoram a aparecer em pessoas negras.

    “É uma predisposição natural e ainda maior naqueles de pele retinta”, afirma Monalisa Nunes, dermatologista e expert em estética e cosmética vegana com atuação na capital paulista. Mas não se pode contar apenas com a sorte ou com a loteria da genética.

    É preciso fazer o uso do filtro solar diariamente, visitar regularmente o dermatologista, além de manter uma alimentação saudável e a hidratação em dia.

    + Leia também: Desigualdade racial afeta envelhecimento da população negra

    “Há também muitas técnicas voltadas para a estimulação da produção de colágeno, das quais destaco os bioestimuladores, um procedimento estético seguro, que deve ser feito por profissional capacitado, e ajuda a manter a aparência jovial”, detalha a médica.

    Envelhecer com saúde é o que todos buscam, afinal estamos vivendo muito mais. Hoje, um em cada dez brasileiros tem 65 anos ou mais, e, entre eles, 48% são negros.

    Com a velhice, chegam também as preocupações com doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, e é comum que os cuidados com a pele fiquem de lado. Contudo, é importante manter a atenção nas mudanças à flor da pele.

    É na maturidade que tumores cutâneos aparecem com maior frequência, além de lesões benignas, como a queratose seborreica (verrugas que parecem descamar) e a dermatose papulosa nigra (pápulas que surgem no rosto e no pescoço, principalmente).

    Além de envelhecer com disposição e saúde física, o bem-estar emocional nunca pode ser ignorado. Acontece que a saúde mental da população negra brasileira não vai tão bem.

    + Leia também: Precisamos falar sobre a saúde mental da população negra

    Mente e corpo necessitam atenção

    De acordo com dados do Ministério da Saúde, o índice de suicídios entre jovens negros é 45% maior do que o de brancos. Pessoas pretas e pardas também experimentam maior estresse, ansiedade e depressão — reflexo do racismo enfrentado diariamente em um país que pena para diminuir suas disparidades raciais.

    “Tudo isso pode se refletir na pele, com condições de origem psicossomática que se manifestam a partir do momento em que alguém passa por algum abalo emocional”, explica Ivonise Follador, coordenadora do Departamento de Psicodermatologia da SBD.

    É uma prova de que é urgente olhar para a saúde da população negra — por dentro e por fora.

    Cosméticos sob medida

    Representando mais da metade da população brasileira, pessoas negras são responsáveis por movimentar a economia do país em mais de 1,7 trilhão de reais ao ano. Mas quase nunca têm acesso a produtos que sejam realmente elaborados para atender suas necessidades.

    Segundo pesquisa conduzida pela consultoria DSM, 96% das mulheres pretas concordam que gostariam de ver mais soluções exclusivas para seu tom de pele. Para 80% delas, o cuidado dermatológico é uma questão de bem-estar e saúde mental.

    Na percepção desse grupo, os produtos mais difíceis de ser encontrados são os cosméticos, artigos para tratamento facial e protetor solar. As principais demandas são o tratamento de acne, olheiras e oleosidade.

    “É um mercado em expansão, que ainda tem muito a evoluir”, resume a dermatologista Monalisa Nunes, de São Paulo.

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