Um estudo conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revela um aumento de 6% ao ano na taxa de suicídio entre jovens no Brasil de 2011 a 2022. No mesmo período, os registros de autolesões de crianças e jovens adultos de 10 a 24 anos cresceram 29% a cada ano.
Preocupantes, os dados desse público superam os indicadores da população em geral, que apresentou uma elevação média de 3,7% ao ano de casos de indivíduos que tiraram a própria vida e de 21% ao ano para os episódios de violência autoprovocada.
Para chegar aos resultados, especialistas do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em colaboração a Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, analisaram três bases de dados: o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), o Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e de Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
A psicóloga e doutora em saúde pública Flávia Jôse Alves, pesquisadora da Fiocruz Bahia e líder do estudo, destaca que o trabalho é um primeiro passo importante rumo a políticas efetivas de controle desses problemas. “Uma das principais ferramentas para a prevenção é entender o que está acontecendo. Para isso, é preciso ter dados de qualidade“, relata.
Os resultados foram publicados no periódico científico The Lancet Regional Health – Americas.
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Causas multifatoriais
O trabalho em questão não se debruçou sobre as causas dos resultados encontrados. Mas o suicídio geralmente é atribuído a um conjunto de fatores que conduzem a um sofrimento psíquico profundo.
Entre os mais significativos estão: história de suicídio na família, tentativas prévias e o acesso a meios de alta letalidade, como armas de fogo e substâncias tóxicas. Também contribuem como gatilhos as experiências potencialmente traumáticas, a exemplo de mortes de pessoas queridas, diagnóstico de doenças graves, divórcio, violência doméstica, desemprego e crise financeira.
Vale destacar que a ação de tirar a própria vida é considerada um desfecho de uma situação crítica que em geral envolve tentativas anteriores. Pesam ainda sobre o problema os transtornos mentais, sendo a depressão o mais relevante.
“E não podemos nos esquecer que tivemos uma pandemia de Covid-19 há pouco tempo, com um impacto importante na saúde mental, principalmente de jovens”, destaca a psicóloga Karen Scavacini, da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (Abeps).
Suicídio na adolescência
Os adolescentes realmente despertam uma atenção redobrada, porque sofrem especialmente com questões como a comparação com pessoas da mesma idade, as dificuldades em lidar com frustrações, o bullying e os mais diversos tipos de pressões sociais.
“Os jovens têm questões sociais de pertencimento, adequação e convivência que são fundamentais para eles e que têm muito mais impacto do que na comparação com um adulto”, reforça a especialista.
O psicólogo Maycon Torres, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), dá exemplos de situações que fazem esse público sofrer mais do que a média. “A separação dos pais, especialmente em processos complicados; problemas institucionais na escola, aumento de tempo de tela e o excesso de uso das redes sociais”, enumera.
Busca de alívio da dor psíquica
A prática de autolesão (também chamado de automutilação no passado) faz parte de um conjunto de comportamentos denominados pelos especialistas de violência autoprovocada.
Cortes, arranhões, queimaduras, socos, tapas, mordidas e até mesmo o ato de se jogar contra objetos são exemplos de autolesão. “A intenção, na maioria das vezes, não é a morte, e sim o alívio de uma dor psíquica muito grande. A autolesão se difere do comportamento suicida basicamente pela intencionalidade“, afirma Karen. “Há jovens que começam a se autolesionar por curiosidade ou na busca de pertencimento e acabam usando isso para lidar com as suas dores”, afirma Karen.
Alguns contextos favorecem atitudes de violência autoprovocada:
- Bullying ou cyberbullying
- Abuso físico ou sexual
- Conflitos familiares
- Transtornos mentais
- Consumo excessivo de álcool ou drogas
- Vulnerabilidade social
- Dificuldades em lidar com o próprio corpo ou sexualidade
Ainda nesse cenário, as redes sociais apresentam um risco em potencial devido à presença de grupos que estimulam não apenas a autolesão e o comportamento suicida, como também transtornos alimentares, discursos de ódio e intolerância.
“É uma ideia que os estudiosos chamam de contágio social: a tentativa de suicídio de uma pessoa alimenta outras tentativas e isso vai, de certa forma, se alastrando. Ou seja, os adolescentes podem replicar um tipo de comportamento encontrado nas redes sociais”, explica Torres.
Em 2019, a Lei 13.819 determinou a notificação compulsória pelos serviços de saúde de casos de violência autoprovocada. A psicóloga Karen Scavacini, que também é do Instituto Vita Alere, avalia que o aumento brusco desse tipo de violência também pode ser explicado, em parte, pela mudança na legislação, que levou a uma identificação mais precisa do problema.
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Os dados brasileiros, em detalhes
A cada ano, mais de 700 mil pessoas tiram a própria vida no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O suicídio é considerado a quarta principal causa de mortes entre pessoas de 15 a 29 anos.
No Brasil, ocupa a segunda posição no ranking de óbitos entre adolescentes de 15 a 19 anos e a quarta na faixa etária de 20 a 29 anos. Os indicadores brasileiros mais recentes, divulgados pelo Ministério da Saúde em fevereiro, são referentes ao período de 2010 a 2021.
“O aumento do suicídio e da autolesão é um retrato escancarado de que tem algo complicado acontecendo com a nossa sociedade. Nesse contexto, estão problemas nos vínculos, nas relações – sejam elas entre amigos, familiares ou da própria sociedade – e na esperança com o futuro”, pontua Karen.
Em 2021, foram registrados mais de 15,5 mil suicídios, o equivalente a uma morte a cada 34 minutos. Quase 78% dos casos ocorreram entre homens. No mesmo ano, o problema representou a 27ª causa de morte no país, principalmente entre adolescentes e adultos jovens.
“As meninas acabam sendo mais abertas a receber ajuda. Mas ainda não é aceito em muitos locais que meninos demonstrem sentimentos ou vulnerabilidade, principalmente na escola”, frisa Karen. Segundo ela, precisamos falar mais sobre isso também com eles.
Os dados revelam ainda uma elevada carga de suicídios entre indígenas em relação a outros grupos. O fenômeno já havia sido destacado em estudos anteriores, que indicam que a taxa entre essa população é aproximadamente três vezes maior do que a geral.
Entre os fatores críticos para esse grupo estão o consumo abusivo de álcool e drogas, mudanças socioculturais no contato com a sociedade não indígena, abandono de tradições e fragilização cultural, enfraquecimento de laços familiares e comunitários, e falta de acesso
à educação e ao trabalho.
De acordo com o boletim do ministério, mais de 114 mil casos de violência autoprovocada foram notificados no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan) em 2021.
Cerca de 70% das autolesões ocorreram entre mulheres, com um predomínio geral na faixa de 20 a 49 anos (60,2%). No sexo feminino, os maiores percentuais foram em crianças e adolescentes de 5 a 14 (11,5%) e de 15 a 19 (23,2%), em comparação ao masculino, que foram de 4,1% e 17,5%, respectivamente.
O documento destaca ainda que 4% dos casos foram registrados entre indivíduos homo ou bissexuais, e 1,5% como travestis ou transexuais, com um total de 4,8% de indivíduos classificados como LGBTQIA+.
Fatores como estigmatização, preconceito e discriminação, por vezes exacerbados pela rejeição familiar, exclusão no ambiente de trabalho e pela violência física e verbal, contribuem para o desenvolvimento de problemas de saúde mental entre essa população e para um risco elevado de comportamentos suicidas.
Caminhos para reverter o quadro
A prevenção do suicídio envolve uma abordagem de diversos contextos da sociedade, incluindo família, escola, trabalho, gestores e formuladores de políticas públicas em saúde.
“Especialmente no que diz respeito à infância e adolescência, o pilar importante envolve a escola, mas ela precisa estar articulada com a família, com a comunidade e com os serviços de saúde”, diz Torres.
A psicóloga Karen Scavacini avalia como essencial a expansão da rede de atenção psicossocial, buscando garantir o acesso mais amplo aos serviços de saúde mental no país. Nesse contexto, ela idealizou o Mapa da Saúde Mental, projeto que permite a consulta de serviços de atendimento psicológico gratuito, voluntário ou com preços acessíveis no Brasil.
“Temos que falar de uso seguro da internet e em como melhorar a relação com a tecnologia e as redes sociais. As famílias precisam ser orientadas para lidar com toda essa problemática. Temos um caminho longo pela frente”, conclui Karen.