Trump associa autismo a uso de Tylenol na gestação: saiba o que diz a ciência
Entenda as repercussões do anúncio do presidente dos Estados Unidos e as reações da comunidade científica
Em entrevista à imprensa realizada na segunda-feira, 22, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump associou a utilização de Tylenol durante a gravidez ao desenvolvimento de autismo em crianças e citou um “aumento exponencial” de casos do transtorno nas últimas duas décadas.
O analgésico, um dos poucos liberados pelos médicos para gestantes, é composto por paracetamol, mais conhecido nos Estados Unidos como acetaminofeno.
De acordo com a Casa Branca, evidências sugerem que o uso do remédio, especialmente no final da gestação, possa causar efeitos neurológicos a longo prazo. Contudo, durante a entrevista, não foram apresentados resultados de novos estudos que comprovem as alegações de Trump, o que chamou atenção da comunidade científica internacional.
“A FDA [Food and Drug Administration] vai notificar médicos de que o uso de […] acetaminofeno, que é basicamente conhecido como Tylenol, durante a gravidez pode estar associado com um risco muito alto de autismo. Então, tomar Tylenol não é bom”, disse Trump acompanhado do secretário de saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr., e do comissário da FDA, Martin Makary [leia mais abaixo].
Em comunicado publicado posteriormente por Washington, foram mencionadas ao menos cinco pesquisas publicadas em periódicos científicos, como JAMA Psychiatry, Nature Reviews Endocrinology e Environmental Health. Porém, estudiosos avaliam que as análises conduzidas até o momento não permitem cravar com base em dados que o analgésico seja a causa de autismo.
O que diz a ciência?
“Alguns estudos, de fato, mostram uma ligação entre mulheres que usaram grandes quantidades de paracetamol na gravidez com um risco um pouco maior de diagnóstico de TEA [transtorno do espectro autista] ou TDAH [transtorno de déficit de atenção e hiperatividade] em seus filhos. Entretanto, isso não prova que o paracetamol seja a causa”, enfatiza a médica psiquiatra Laiana Quagliato, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os motivos que levam a gestante usar o remédio, por exemplo, pontua a professora, como uma febre ou uma infecção, podem ser os verdadeiros fatores de risco, e não o composto em si.
“Quando os pesquisadores compararam irmãos da mesma família com diagnóstico de TEA — em que uma gravidez teve uso de paracetamol e a outra não, a diferença no risco praticamente sumiu”, comenta Quagliato.
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Ginecologistas rebatem afirmação
Diante da repercussão, o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG) divulgou um comunicado afirmando que o anúncio da Casa Branca é irresponsável, preocupa médicos e confunde grávidas, que podem precisar do fármaco para alívio de dor e febre.
“O anúncio de hoje do HHS [Departamento de Saúde] não é respaldado por todas as evidências científicas e simplifica perigosamente as muitas e complexas causas de problemas neurológicos em crianças”, diz trecho da nota assinada por Steven J. Fleischman, presidente da instituição.
“É altamente preocupante que nossas agências federais de saúde estejam dispostas a fazer um anúncio que afetará a saúde e o bem-estar de milhões de pessoas sem o respaldo de dados confiáveis”, prossegue o texto.
No que tange à literatura científica disponível, Fleischman também frisa que “nenhum estudo confiável concluiu com sucesso que o uso de paracetamol em qualquer trimestre da gravidez cause distúrbios do neurodesenvolvimento em crianças.”
No Brasil, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) segue o mesmo posicionamento ao considerar o paracetamol uma medicação segura na gravidez.
“Na gestante, pode ser utilizado em qualquer trimestre, no primeiro, segundo e terceiro trimestres, desde que haja uma indicação, nunca fazer a medicação de uso rotineiro. Em caso de dor crônica ou permanente, é preciso ir ao médico para avaliar as causas e a possibilidade de outro tratamento para alívio”, afirma o ginecologista Mário Henrique Burlacchini de Carvalho, presidente da Comissão Nacional Especializada em Medicina Fetal da Febrasgo.
Na opinião de Carvalho, o anúncio da Casa Branca pode gerar ansiedade em futuras mães em todo o mundo devido à ampla capacidade de repercussão da fala do presidente estadunidense.
“Há uma penetração muito grande entre a população, porque traz em si uma informação de risco para o feto em desenvolvimento, e ansiedade gerada é prejudicial para a gravidez. Por isso, é importante que os órgãos oficiais no país e no mundo se posicionem reforçando que o Tylenol é uma medicação segura e, quando bem indicada, deve ser usada na gestação”, frisa o ginecologista.
Há uma epidemia de autismo?
Estudos sugerem que a prevalência do transtorno do espectro autista (TEA) cresce no mundo, tendência observada por experts como consequência de um aumento na identificação e não exatamente de casos ou uma suposta “epidemia”.
O fenômeno estaria associado principalmente ao aprimoramento dos profissionais de saúde para a identificação e aplicação de critérios de diagnóstico.
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Estudos sobre autismo e paracetamol
Diversas investigações versam sobre o mesmo tema. No entanto, nenhum conjunto de evidências atualmente permite concluir que o paracetamol cause autismo em crianças.
O psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor da Universidade de São Paulo (USP), aponta dificuldades na realização de análises sobre o tema.
Entre os desafios, destacam-se, por exemplo, mensurar a quantidade de medicação utilizada pelas participantes devido à venda livre do produto, o longo período de seguimento da gestação e a possibilidade de ocorrência simultânea de outros problemas de saúde, como infecções.
“É uma pergunta de pesquisa difícil. Alguns estudos menores, ao longo do tempo, mostraram alguma associação pequena — lembrando que associação não significa necessariamente que haja uma relação de causa e efeito”, afirma Polanczyk.
Em 2021, uma declaração de consenso, citada pela Casa Branca em seu comunicado, veiculada na Nature Reviews Endocrinology, recomenda que grávidas “minimizem a exposição” ao paracetamol “usando a menor dose eficaz pelo menor tempo possível.”
Poucos meses depois, outra publicação rebateu os autores da primeira declaração ao afirmar que o texto não representava um esforço colaborativo em nome de autoridades de saúde ou organizações de especialidades médicas. No artigo, os pesquisadores pedem cautela e discordam da avaliação anterior.
Em um amplo trabalho publicado no periódico JAMA, em 2024, cientistas não encontraram associações significativas entre o uso de paracetamol durante a gravidez e o risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual em crianças.
Um artigo de revisão, divulgado em agosto pela revista Environmental Health, sugere haver evidências consistentes de relação entre a exposição ao paracetamol durante a gravidez e o aumento da incidência de transtornos do neurodesenvolvimento.
“Os estudos frequentemente apontados como evidência de uma relação causal, incluindo a última revisão sistemática divulgada em agosto, incluem as mesmas limitações metodológicas — por exemplo, a falta de controle para fatores de confusão ou o uso de dados autorrelatados não confiáveis — que prevalecem na maioria dos estudos sobre o tema”, pontua Fleischman.
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Bula pode ser alterada
Conforme anunciado à imprensa pelo presidente norte-americano, a FDA, agência reguladora de medicamentos dos EUA, abriu processo de alteração da bula do Tylenol e similares nesta segunda-feira.
Segundo o comunicado, a mudança irá “refletir evidências que sugerem que o uso de paracetamol por gestantes pode estar associado a um risco aumentado de condições neurológicas, como autismo e TDAH, em crianças.”
E, como adiantado por Trump, a agência também emitiu uma notificação relacionada alertando médicos em todo o país.
“Mesmo com esse conjunto de evidências, a escolha ainda cabe aos pais. O princípio da precaução pode levar muitas pessoas a evitar o uso de paracetamol durante a gravidez, especialmente porque a maioria das febres baixas não requer tratamento. No entanto, continua sendo razoável que gestantes usem paracetamol em certos cenários”, afirmou Makary.
Trump sugere leucovorina como tratamento para o autismo
Ainda na segunda-feira, a FDA anunciou tomar medidas para disponibilizar tratamento para sintomas de autismo, com a aprovação de comprimidos de leucovorina cálcica.
“A leucovorina, ou ácido folínico, é uma forma de folato [vitamina B9] que, em alguns estudos, melhorou a comunicação e outros sintomas em crianças com diagnóstico de TEA, especialmente entre aquelas que apresentam sinais de problema no transporte ou metabolismo do folato”, explica Quagliato.
A psiquiatra explica que parte dos pequenos no espectro autista apresentam alterações em vias do folato ou possuem anticorpos que bloqueiam o seu transporte para o sistema nervoso central.
Nesses casos, fornecer o ácido folínico pode “contornar” o bloqueio e melhorar a disponibilidade da substância no sistema nervoso central, o que poderia ajudar a melhorar funções cognitivas e de linguagem dos indivíduos.
“A evidência é promissora, mas ainda limitada, visto que os efeitos parecem mais claros em subgrupos específicos de indivíduos com TEA e não há prova de que seja um ‘remédio para o TEA’ de forma geral”, pontua a professora da UFRJ.
A opinião é compartilhada pelo professor da USP. “Como a leucovorina, existem várias substâncias sendo avaliadas para o manejo do autismo. Estudos são limitados e não seria seguro dizer, com as evidências que temos hoje, que é possível indicá-la como tratamento para o autismo”, afirma Polanczyk.
A politização do autismo
Para os experts, o cenário pode indicar pressão política pela busca por uma cura do TEA.
“Isso nasce do sofrimento real das famílias, dos custos sociais do transtorno, de interesses econômicos e do valor simbólico de apresentar uma ‘solução definitiva’ para a condição”, salienta Quagliato.
“Entretanto, essa pressão é extremamente problemática, pois atropela a cautela científica e pode postergar descobertas que de fato seriam importantes”, frisa.
“Quando esse debate entra no campo político, pode haver uma pressão por respostas a uma questão que mobiliza a sociedade, como é o caso do autismo. Isso ajuda a entender por que líderes acabam fazendo associações rápidas e simplórias, mesmo sem consenso científico”, pontua a psiquiatra Flavia Zuccolotto, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
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O que diz a fabricante do Tylenol?
Consultada por VEJA SAÚDE, a Kenvue, fabricante do Tylenol, afirmou em nota que a ciência demonstra que tomar paracetamol não causa autismo.
“O paracetamol é a opção analgésica mais segura para gestantes, conforme necessário, durante toda a gravidez. Sem ele, as mulheres enfrentam escolhas perigosas: sofrer com condições como febre, que são potencialmente prejudiciais tanto para a mãe quanto para o bebê, ou usar alternativas mais arriscadas”, diz trecho da nota.
“Febre alta e dor são amplamente reconhecidas como riscos potenciais para uma gravidez se não forem tratadas”, prossegue. A empresa também destaca que a segurança do analgésico para bebês e crianças foi comprovada a partir da realização de estudos clínicos.
“Continuaremos a reforçar que as gestantes devem consultar seus profissionais de saúde antes de tomar qualquer medicamento sem receita e exploraremos todas as opções para proteger os interesses da saúde das mulheres e crianças americanas”, finaliza.
O que é o paracetamol?
O paracetamol, também conhecido pelo nome comercial de Tylenol, é um analgésico utilizado para o alívio de dor e febre.
“Ele consegue inibir algumas enzimas que produzem substâncias inflamatórias no corpo e provocam sintomas incômodos”, resume o farmacologista Lucas Gazarini, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
De acordo com o especialista, o principal problema em relação ao medicamento é o uso excessivo, seja ele na gestação ou não. Por ser um medicamento isento de prescrição, ou seja, de venda livre, há uma sensação equivocada de que não há qualquer chance de encrencas.
“O principal risco é o dano hepático, uma vez que o remédio é metabolizado em algumas substâncias tóxicas. Nosso corpo tem formas de neutralizar essa ação tóxica no fígado. O problema é quando o uso do paracetamol acontece em grandes quantidades. O que pode levar a morte de células do fígado e a um quadro de hepatite tóxica”, contextualiza.
Antes de utilizar qualquer medicamento, leia a bula.
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