Conheça o coquetel de anticorpos contra a Covid-19 aprovado no Brasil
Esse é o primeiro tratamento precoce contra o coronavírus liberado pela Anvisa. O que a ciência sabe sobre ele? Quais as indicações? E as desvantagens?
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), aprovou recentemente o medicamento REGN-COV2 para pessoas com Covid-19 nos primeiros dias dos sintomas e que não foram internadas, mas que possuem risco maior de desenvolver quadros graves. O coquetel contém dois anticorpos monoclonais, casirivimabe e imdevimabe, e será aplicado via infusão intravenosa.
Segundo a Roche, parceira da Regeneron na fabricação do produto, a combinação reduziu em até 70% o risco de hospitalização ou morte pela doença em um estudo de fase 3 com mais de 4 500 voluntários. Eles foram divididos em quatro grupos, que receberam placebo ou três diferentes dosagens do fármaco.
Ao final de 28 dias, 86 participantes no esquema do placebo (4% do total) foram internadas ou faleceram. Entre os que tomaram o composto real, foram registrados 25 hospitalizações ou óbitos (cerca de 1% do total).
A pesquisa ainda não foi publicada em um periódico científico, o que limita qualquer interpretação, mas o comunicado da empresa e o sinal verde da Anvisa indicam uma ação positiva em uma fase da doença onde outros remédios não funcionaram até agora. “Seria o primeiro no Brasil a realmente permitir uma atuação precoce, antes que a pessoa fique severamente doente”, comenta o infectologista Alexandre Zavascki, do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre (RS).
A droga ficou famosa ao ser utilizada como parte do tratamento contra a Covid-19 do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Ela foi aprovada pelas autoridades norte-americanas em novembro de 2020. Assim como por lá, a liberação da Anvisa é para o uso emergencial, o que significa que ela só deve ser usada em determinadas circunstâncias, e que os estudos seguem em andamento.
Como atua o coquetel e para quem é indicado
Os compostos do REGN-COV-2 foram construídos em laboratório para imitar o funcionamento dos nossos próprios anticorpos. “Eles se ligam em lugares diferentes da proteína S do Sars-CoV-2 [também chamada de espícula], bloqueando sua entrada nas células”, explica Patrick Eckert, presidente da Roche Farma Brasil.
Como no caso do plasma de convalescente, que usa sangue de recuperados da infecção, o raciocínio é oferecer soldados de defesa temporários para o corpo, enquanto ele não teve tempo de fabricar seu próprio exército contra o coronavírus. Até por isso, o novo tratamento tende a funcionar melhor na fase inicial da doença.
Nas etapas mais avançadas da Covid-19, em que há um processo inflamatório intenso, o problema deixa de ser o vírus em si. A partir desse ponto, o REGN-COV2 não é recomendado — e pode inclusive piorar a situação, apontam os dados analisados pela Anvisa.
O coquetel deve ser administrado nos primeiros dez dias do surgimento dos sintomas, em indivíduos que testaram positivo para o Sars-CoV-2, mas não estão internados. O paciente precisa ter ao menos 12 anos e um alto risco de agravamento do quadro. E como os especialistas medem isso? Há vários critérios, como estar acima dos 65 anos e possuir doenças que favorecem o coronavírus, a exemplo do diabetes.
Outro detalhe: a aplicação do fármaco é necessariamente feita em ambiente hospitalar. Ora, se o uso só ocorre nesses locais, mas os indivíduos não estão internados, como funciona o protocolo na prática? “A pessoa receberá a prescrição e será direcionada a um hospital para receber a infusão”, introduz o gerente geral de medicamentos da Anvisa, Gustavo Mendes, na entrevista coletiva sobre a aprovação. Depois da aplicação, que é única, ela volta para casa.
O REGN-COV2 pode evitar a Covid-19?
Até agora, falamos de indivíduos com manifestações iniciais dessa enfermidade. Contudo, a Roche anunciou no dia 12 de abril que o coquetel também agiria de maneira preventiva. Em um estudo com 1 505 voluntários não infectados, mas convivendo com doentes, os que tomaram uma injeção com os dois anticorpos tiveram um risco 81% menor de desenvolver quaisquer sintomas de Covid-19.
O achado ainda não foi publicado em um periódico científico, tampouco corroborado por qualquer agência reguladora. Isso significa que o produto não passou pela revisão de pesquisadores independentes e que também não possui aval para esse fim. “A autorização concedida pela Anvisa não se refere a essa indicação”, reforça o presidente da Roche Farma Brasil.
Só para relembrar: nenhum medicamento se mostrou, até agora, capaz de prevenir o aparecimento da infecção ou impedir seu agravamento. O REGN-COV-2 seria o primeiro.
Anticorpos monoclonais contra a Covid-19
Considerada uma das grandes evoluções recentes da indústria farmacêutica, a categoria ganhou destaque na busca por um tratamento contra a Covid-19. Em linhas gerais, os anticorpos monoclonais são desenhados para se ligar a moléculas num esquema chave-fechadura. Isso os torna capaz de gerar reações bastante específicas, dependendo do alvo.
O tocilizumabe, criado originalmente para tratar artrite reumatoide, foi um dos primeiros a serem testados no contexto pandêmico. Na teoria, seria útil na segunda fase da doença, quando o quadro já se agravou, para bloquear a ação de uma das substâncias envolvidas na tempestade inflamatória, a interleucina-6. Os estudos trouxeram resultados contraditórios, portanto seu benefício ainda é incerto.
Outro representante da classe teve sua aprovação emergencial revogada recentemente nos Estados Unidos. Trata-se do bamlanivimabe, da Eli Lilly, que segue a mesma lógica do REGN-COV2, oferecer anticorpos prontos ao organismo. Segundo a própria fabricante, as mutações das variantes tornam o coronavírus resistente à terapia.
No entanto, o bamlanivimabe ainda pode ser prescrito nos Estados Unidos, quando em conjunto com o etesevimabe. O protocolo desse coquetel é parecido com o do REGN-COV2.
Variantes
O REGN-COV2 demonstrou, em ensaios com células isoladas no laboratório, manter sua eficácia frente às variantes B.1351, B.1.1.7 e P1. Isso provavelmente ocorre por causa da combinação de anticorpos que se ligam em pedaços diferentes da espícula do coronavírus. “A probabilidade de aparecer uma variante com alterações nessas duas regiões é menor”, destaca o infectologista.
Aliás, daí porque aquela combinação do bamlanivimabe com o etesivimabe também segue liberada nos Estados Unidos.
Acesso é um problema
Pode ser que a abordagem moderna dos anticorpos monoclonais gere novos antivirais. Mas eles em si têm seus próprios desafios, como um processo de fabricação complexo e caro. O governo da Alemanha negociou 200 mil doses do REGN-COV2 a um preço de 2 mil euros cada, algo na casa dos 15 mil reais. O valor no Brasil ainda não está definido, o que deve fazer com que o tratamento demore mais um tempo antes de ficar disponível.
Por essas e outras, uso do coquetel provavelmente será limitado no nosso país. “Do ponto de vista individual, parece uma estratégia interessante, mas, como poucas pessoas desenvolvem quadros graves mesmo sem qualquer tratamento, seria preciso aplicá-lo em um número significativo de pacientes para obter algum benefício”, pondera Zavascki. Baseado nos dados disponíveis no comunicado de imprensa da Roche, o médico do Hospital Moinho de Vento calcula que entre 30 e 45 pacientes teriam que receber a terapia para que um não fosse internado em virtude dela.
Além dessa questão e do próprio custo, há o desafio de mandar mais gente tomar um medicamento na veia em hospitais que já estão sobrecarregados. Em um balanço sobre o esquema nos Estados Unidos, o jornal americano The New York Times avalia que a tática acabou encalhando nos congeladores em parte por causa disso.
Falta também saber quando essa terapia estará de fato disponível no Brasil. A incorporação na rede pública depende de uma comissão do Ministério da Saúde que irá fazer cálculos de custo-benefício. Já a aplicação na rede privada seria inédita, porque a liberação emergencial é destinada preferencialmente a grupos específicos do Sistema Único de Saúde (SUS), como ocorre com as vacinas.
A Roche afirma que a aprovação se destina à rede pública. “Estamos conversando com representantes do Ministério da Saúde para viabilizar o acesso”, corrobora Eckert.
Trata-se do segundo medicamento específico contra a infecção a ser liberado no Brasil – o primeiro foi o antiviral remdesivir, em março.