Boston, Estados Unidos, 1879. Um médico se prepara para dormir quando o telefone toca. Do outro lado da linha, uma de suas pacientes, mãe de primeira viagem, reclama da tosse do filho. Tinha medo de que o garoto estivesse com crupe, doença respiratória que provoca tosse rouca e dificuldade para respirar. Experiente, o doutor pede à mulher que coloque o bebê na linha. Assim que ouve a tosse da criança, dá o veredicto: “Não é crupe!”. Receita um xarope, deseja “boa noite” e vai dormir. Mal sabia ele que, naquele momento, acabava de inaugurar o atendimento médico a distância.
São Paulo, 2020. O oncologista Raphael Brandão está em casa, cumprindo isolamento social, quando se pergunta: “O que eu posso fazer para ajudar?”. Aí vem o estalo para criar, em parceria com o cardiologista Leandro Rubio e o publicitário Cristiano Kanashiro, o Missão Covid, plataforma virtual que, numa fase inicial, contava com 20 médicos para tirar dúvidas, por meio de chamadas de vídeo pelo WhatsApp, sobre os sintomas da Covid-19. Desde 23 de março, 1,1 mil médicos já atenderam 92 mil brasileiros, inclusive gente que mora no exterior. Desses, só 15% precisaram ir a unidades de saúde.
Mais de cento e quarenta anos se passaram entre uma iniciativa e outra: do primeiro caso de telemedicina da história, segundo o periódico científico The Lancet, ao surgimento de uma das maiores plataformas virtuais a conectar gratuitamente médicos e pacientes com suspeita de infecção por coronavírus. “A telemedicina é o novo estetoscópio”, compara Brandão. “Ao longo do dia, recebo ligações de pacientes com reações adversas a quimioterapia. Antes, pedia a eles que procurassem um pronto-socorro. Hoje, realizo uma teleconsulta. Entendo os sintomas, ajusto os remédios. Só encaminho para o hospital quando necessário”, revela o médico.
Aprovada no dia 15 de março, a Lei nº 13.989 estabelece o uso da telemedicina, em caráter emergencial, enquanto durar a pandemia do coronavírus. Ela compreende “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e promoção de saúde”. O profissional deve seguir os padrões, inclusive éticos, do atendimento presencial e informar ao paciente as limitações da consulta remota, como a impossibilidade de realizar exames físicos. Terminada a crise, outra lei terá que ser criada para mediar a prática.
“A telemedicina existe para facilitar o acesso do paciente ao profissional de saúde. A consulta virtual não veio para substituir a consulta presencial. Veio para melhorá-la”, explica Donizetti Giamberardino, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). “Ela é bastante útil quando o paciente já foi atendido pelo médico e, eventualmente, precisa de algum exame complementar ou quando é portador de doença crônica, como hipertensão ou diabetes. O ideal é que, salvo em situações de necessidade ou em lugares distantes, como a Amazônia, a primeira consulta continue a ser presencial”, salienta o médico.
A teleconsulta entre profissional e paciente é uma das muitas formas de telemedicina. Há outras modalidades: teleinterconsulta, quando o médico solicita uma segunda opinião a outro especialista, com ou sem a presença do paciente; telemonitoramento, quando alguém com doença crônica passa os resultados dos seus exames para o médico avaliar; e até teleUTI, quando um médico sênior intensivista realiza visitas aos leitos a distância.
Até mesmo a impossibilidade de fazer exames físicos, apontada como uma das principais desvantagens da telemedicina, já pode ser contornada com dispositivos eletrônicos. Existem engenhocas que checam a pressão arterial, auscultam os pulmões, examinam a garganta…
“A consulta física e a virtual são complementares, e não excludentes. Uma não elimina a outra”, sentencia Eduardo Cordioli, gerente médico de telemedicina do Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista, que, desde 2012, oferece serviços de teleatendimento. “A tendência é que, no futuro, a consulta seja iniciada de forma virtual e, caso o médico julgue necessário, uma consulta presencial será agendada para complementar”, prevê.
Com a pandemia, o Einstein registrou um aumento de 1 330% nas teleconsultas (de 70 para mil por dia) e de 2 400% nos teleatendimentos (de 200 para 5 mil por dia).
Entre os prós e os contras da assistência remota, o cirurgião torácico Hassan Neto, gerente médico do Grupo Leforte, acredita que as vantagens prevalecem. Hoje, além de garantir o isolamento social, a telemedicina evita deslocamentos desnecessários e gastos supérfluos, com trânsito, estacionamento e combustível, por exemplo. “O paciente ainda poderá escolher onde se sente mais à vontade, em casa ou no consultório”, destaca Neto.
Entre as desvantagens, ele cita duas dificuldades: fazer exame físico e conquistar a empatia do paciente. Outro ponto crítico: nem todos os convênios cobrem o serviço.
Muito além da medicina
A telemedicina não é privilégio de instituições ou médicos particulares. Desde abril, o Ministério da Saúde disponibiliza o TeleSUS, serviço de atendimento a distância que, por telefone, chatbot ou aplicativo, já foi acessado por 5,7 milhões de brasileiros. Desses, 2,4 milhões tiraram dúvidas sobre os sintomas da Covid-19 e se consultaram com um profissional de saúde sem sair de casa — uma senhora vantagem em tempos de coronavírus.
Outras categorias, como psicólogos, nutricionistas e fisioterapeutas, também passaram a encorpar a tendência da telessaúde na esteira da pandemia.
“Graças à telefonoaudiologia, muitos tratamentos não precisaram ser interrompidos. Os fonoaudiólogos continuam prestando serviço de maneira regular e ininterrupta”, conta Andréa Cintra Lopes, presidente do Conselho Federal de Fonoaudiologia. Roberto Mattar Cepeda, presidente do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, pondera que nem todos os procedimentos podem ser realizados remotamente nessa área: “O fisioterapeuta e o terapeuta ocupacional têm autonomia para avaliar quando a consulta deverá ser virtual. O principal critério é o benefício e a segurança do paciente”.
Tudo leva a crer que, no “novo normal” pós-Covid, a assistência virtual virá para ficar. “O Brasil é continental e não há especialistas em número suficiente para atender as regiões mais remotas do país”, atesta Luiz Ary Messina, presidente da Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde.
Coordenador do Programa de Educação em Telemedicina da Associação Paulista de Medicina (APM), o neurologista Jefferson Gomes Fernandes criou um curso para capacitar colegas nessa nova esfera de atuação — as aulas contemplam inclusive como transmitir acolhimento e empatia no modo online. “A teleconsulta é muito mais do que um bate-papo virtual entre médico e paciente. Ao vivo ou a distância, a medicina precisa ser ética, segura, responsável e de qualidade”, afirma.
Para Anderson Maciel, do Instituto de Engenheiros Eletrônicos e Eletricistas (IEEE), as consultas médicas, salvo raras exceções, nunca mais serão as mesmas. E ele não está falando só de atendimentos por aplicativos como Skype ou WhatsApp. “A próxima fronteira da medicina será a consulta em realidade virtual”, vislumbra.
“O médico vai atender como se estivesse na presença do paciente e o paciente vai se sentir como se estivesse na presença do seu médico. E o que é melhor: sem risco de contágio e infecção”, descreve. Muda o mundo, muda o jeito de cuidar de si e dos outros.
Como não cair em ciladas nas teleconsultas
Algumas orientações fazem a diferença:
Começar: se possível, não use a teleconsulta em um atendimento inicial. O ideal é que a primeira vez seja presencial mesmo.
Pesquisar: certifique-se de que o profissional é habilitado a prestar atendimento e se está registrado no conselho profissional.
Precaver: priorize teleatendimentos feitos em plataformas digitais que garantam a privacidade aos dados
do paciente.
Garantir: verifique se a sua conexão à internet está legal e procure utilizar ferramentas ou apps que já domina ou conhece.
Resguardar: use, se possível, sempre computador ou telefone pessoais. E evite realizar a sessão em locais públicos mesmo após a pandemia.
Focar: busque um ambiente tranquilo, confortável e reservado, e minimize a chance de ser interrompido ou distraído na consulta.