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O mundo também é dos vírus. E o virologista e especialista em coronavírus Paulo Eduardo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP), guia nosso olhar sobre esses e outros micróbios que circulam por aí.
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Rotavírus: tempestade viral em nossos copos d’água

Doença por trás de diarreias, especialmente em crianças, precisa ser combatida com saneamento básico, tratamento da água e vacinação

Por Paulo Eduardo Brandão
18 out 2022, 16h49
vacina do rotavírus
Água sem tratamento adequado ainda é via de contágio dos rotavírus, que provocam diarreia em crianças.  (Foto: GI/Getty Images)
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As cataratas Victoria, localizadas entre a Zâmbia e o Zimbábue, ao sul do continente africano, fazem parte das mais amplas quedas d’água do mundo, ao lado das cataratas do Iguaçu (no Brasil) e do Niagara (entre os EUA e o Canadá). A cada minuto, passam 625 milhões de litros de água do rio Zambeze pelas Victoria Falls, nomeadas assim em homenagem à rainha inglesa Vitória, que reinou entre 1837 e 1901, quando o Império Britânico dominava a região.

A magnificência desse pedaço da natureza contrasta com as sofríveis condições de vida de boa parte da população dos países africanos que o compartilham. Mas o mais surpreendente é que esse mesmo volume de água que passa por minuto pelas cataratas equivale ao volume de líquido perdido por pessoas com diarreia pelo mundo em um único dia!

Protozoários, bactérias e vírus são os responsáveis por doenças que, em comum, provocam diarreia e podem matar suas vítimas por desidratação. Entre os vírus envolvidos nessa história, os rotavírus são os mais populares.

Eles ganharam esse nome porque se parecem com uma roda, que em latim fica rota, quando os observamos via microscopia eletrônica. É nessa “roda” que está o segredo da incrível resistências dos rotavírus.

Imagine um navio com um casco triplo, quase impenetrável. Pense nisso para vislumbrar a tripla camada de proteínas que protege esses vírus e os torna quase imunes à maioria dos desinfetantes. Vem daí também sua capacidade de ficar esperando meses e meses para infectar alguém quando estão livres no ambiente.

Ao contrário dos nossos já íntimos coronavírus, os rotavírus não têm um envelope, o que não só ajuda nessa resistência extraordinária como permite que saiam aos bilhões de cada grama de fezes de uma pessoa com diarreia, peguem carona nos esgotos, nas águas, nos objetos e nas mãos contaminadas e possam chegar até outro indivíduo, entrando pela sua boca e começando o ciclo de novo.

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Os rotavírus existem sob a forma de uma vastidão de tipos diferentes, mais ou menos como temos tipos diferentes de vírus da gripe. Da mesma forma que na gripe, a infecção por um rotavírus A não nos deixa imunes aos rotavírus B, C, D…

Mas o segredo do sucesso dos rotavírus está mesmo criptografado no genoma deles. São onze pedaços independentes de RNA de tamanhos diferentes formando uma constelação molecular guardada dentro daquele casco viral, como se fosse um programa em que cada linha de comando está numa folha de papel distinta.

O trunfo, aqui, é que se dois tipos de rotavírus infectarem a mesma pessoa, o que é bem comum, ambos podem embaralhar seus segmentos de RNA quando vão se multiplicar e um novíssimo tipo do vírus acaba surgindo, com uma programação genética mais eficiente.

E isso não acontece só em seres humanos. Rotavírus também causam diarreia em bois, cavalos, porcos, galinhas e muitos outros animais, com os quais nós inclusive trocamos rotavírus. Dessa forma, as rotaviroses são classificadas como zoonoses, aquelas doenças que se transmitem entre pessoas e outros animais.

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E não é qualquer zoonose! Os rotavírus matam cerca de 440 mil crianças com menos de 5 anos no mundo por ano. Tudo por causa da falta de atendimento médico, nutrição adequada, educação em saúde, mas essencialmente de saneamento básico, o que ainda é raro em regiões da África, da Ásia e da América Latina.

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Em um passado não tão distante

Em 1849, durante o reinado de Vitória, o médico britânico John Snow demonstrou que a epidemia de cólera, uma diarreia tão aguda que pode matar em questão de horas e assolava os ingleses então, tinha ligação com o fato de as pessoas beberem água contaminada com dejetos de esgotos.

Hoje sabemos que a água sem tratamento pode carregar a bactéria Vibrio cholerae, o agente etiológico da cólera. As descobertas feitas desde o século 19 levaram a uma intensa atividade de obras públicas para formar redes de esgoto em Londres e em outras cidades e impedir esse tipo de contaminação. Tal medida contribuiu para controlar não só a cólera mas também outras causas de diarreia.

No caso do rotavírus, mais uma estratégia foi desenvolvida com êxito: uma vacina segura e eficiente. Administrada pela boca, ela é dada gratuitamente no Brasil e em outras partes do mundo para crianças, diminuindo a severidade da infecção e sua letalidade.

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Mas tampouco isso é o bastante. Para vencer os rotavírus e defender suas vítimas, precisamos atender aquelas crianças que não foram imunizadas, sobretudo com reidratação via oral e, nos casos mais graves, na veia mesmo, e garantir a universalização do saneamento básico.

Talvez necessitemos de um volume de água tão grande quanto o das Victoria Falls para dar conta dessa demanda. E talvez tenhamos que nos lembrar do que disse o médico John Snow sobre a cólera numa época em que as bactérias começavam a ser decifradas e os vírus eram inimagináveis.

“Tudo o que é necessário para prevenir a doença é cuidar da higiene ao se alimentar e dar atenção a esgotos e ao suprimento de água”, afirmou o doutor.

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