Hilderaldo Bellini está longe de fazer parte do seleto grupo dos grandes craques do futebol brasileiro. Mesmo assim, será sempre lembrado como um dos jogadores mais icônicos de nossa rica trajetória no esporte bretão. Afinal, como capitão da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, ele foi o criador do gesto de erguer a taça com as duas mãos acima da cabeça após a vitória na grande final. A atitude seria repetida a partir dali por todos os campeões — incluindo os nossos Mauro Ramos de Oliveira (1962), Carlos Alberto Torres (1970), Dunga (1994) e Cafu (2002).
Nascido em 1930 na pequena cidade de Itapira, no interior paulista, Bellini jogou por quase vinte anos como zagueiro central. Os relatos dizem que ele costumava compensar a falta de habilidade técnica com muito vigor físico, disposição e lealdade aos adversários. Além da camisa canarinho, o atleta defendeu as cores de Vasco da Gama, São Paulo e Atlético Paranaense.
Após algumas décadas da aposentadoria, o ex-jogador foi diagnosticado com a doença de Alzheimer, o tipo de demência mais comum no planeta. Bellini faleceu em 20 de março de 2014, meses antes de sua tão querida seleção levar uma surra homérica da Alemanha em pleno estádio Mineirão, durante a Copa do Mundo sediada em nosso próprio país.
O médico que acompanhava o seu caso era Ricardo Nitrini, professor titular de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Após a morte do antigo capitão, o especialista conversou com a viúva de Bellini e a convenceu a doar o cérebro do marido para a realização de estudos científicos.
A partir da análise da massa cinzenta, Nitrini concluiu que o ex-jogador não tinha Alzheimer, mas, sim, um tipo de demência chamada encefalopatia traumática crônica. Nesses casos, o causador do desajuste cerebral é o excesso de pancadas repetidas na cabeça por um longo período. Bellini se tornou o primeiro caso descrito da doença no mundo do futebol. A notícia correu os quatro cantos do globo e ganhou destaque até no New York Times.
Uma goleada de pesquisas
O achado colocou mais lenha na fogueira de uma grande discussão que ronda os esportes: os golpes no crânio que os atletas levam são um fator de risco para demência? Em caso positivo, é justo que eles continuem a manter um comportamento tão perigoso?
Em outros esportes, os relatos de problemas neurológicos são mais comuns. Há uma grande preocupação sobre lutas como o boxe e o MMA (sigla em inglês para artes marciais mistas). Existem evid��ncias também sobre o futebol americano. Essa, aliás, é uma história que merece ser contada com mais detalhes.
O neurologista nigeriano Bennet Omalu trabalhava em Pittsburgh, nos Estados Unidos, quando publicou os primeiros relatos da tal encefalopatia traumática crônica. Ele avaliou 35 jogadores de futebol americano aposentados e concluiu que 31 deles tinham a encrenca. A quantidade era assustadora.
A NFL, liga profissional do esporte na terra do Tio Sam, rechaçou as descobertas de Omalu, que sofreu uma enorme pressão para retirar as acusações. Afinal, ele estava cutucando uma das instituições mais populares e queridas entre os ianques. Mas ele se manteve firme e, após uma longa batalha judicial, a entidade teve que pagar mais de 765 milhões de dólares para os prejudicados.
E como se define esse problema? Também conhecido por demência pugilística, acredita-se que as pancadas bagunçam a estrutura cerebral e levam, aos poucos, à formação de depósitos de TAU, um tipo de proteína, dentro dos neurônios. O acúmulo dessa substância atrapalha pra valer o funcionamento do raciocínio e da memória. Além disso, leva a sintomas como agressividade e tentativas constantes de suicídio.
Mas voltemos ao nosso futebol: após o caso de Bellini, outra pesquisa, publicada por experts ingleses agora em 2017, acompanhou 14 ex-jogadores entre 1980 e 2010. Nesse período, seis deles morreram e quatro tinham a tal da encefalopatia na cabeça. Um absurdo!
Imagino que, caso você arrisque seus dribles e passes por aí, esteja preocupado ao ler essas linhas — eu, como bom zagueiro caneludo nas canchas da Zona Leste de São Paulo, fiquei tenso ao ouvir a palestra do professor Nitrini durante o Congresso Mundial de Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado na cidade de Porto Alegre em junho passado.
Fim de jogo? Não!
O neurologista, porém, pede cautela. Em sua aula, disse que são poucos os casos relatados e ainda e não dá pra cravar com certeza que o futebol é a causa da doença. Mesmo assim, podemos desde já tomar algumas providências básicas tanto no esporte profissional quanto no amador.
A primeira coisa é resguardar a cachola de nossas crianças. No futebol americano, encontrões de cabeça estão proibidos antes dos 12 anos. Como o cérebro deles ainda está em formação, o risco de repercussões graves aumenta. Entre os maiores, por ora não há muito que ser feito: é difícil imaginar que dois oponentes fujam de uma dividida com medo de consequências posteriores. Capacetes também não parecem ser lá muito viáveis.
Antes da palestra, eu pensava que a bola era a culpada por esse fenômeno. Afinal, os jogadores fazem diversos cabeceios ao longo de um jogo (zagueiros então…). Ainda mais antigamente, quando a pelota era muito pesada em relação às gorduchinhas atuais. Mas Nitrini não acredita que seja essa a questão. Por causa de fenômenos da física (gravidade, velocidade…), o impacto que a esfera tem na cuca é praticamente similar hoje e há 60 anos. O grande dilema seriam as pancadas entre os adversários.
Portanto, a segunda atitude que devemos apoiar como sociedade é cobrar punições mais severas para os encontrões de cabeça. É preciso que juízes mostrem o cartão vermelho àqueles jogadores que atingirem seus adversários nessa região. Você acha que esse tipo de ocorrência é raro? Pelo contrário: na Copa do Mundo de 2014, 18% das lesões foram no crânio, na face e no pescoço. Foi o segundo tipo de machucado mais comum, só atrás de estiramentos e contraturas nas coxas. E você achando que sua dor de cabeça após o 7 a 1 é que tinha sido forte…
Mesmo após sua morte, Bellini continuou como exemplo de pioneirismo. A análise de seu cérebro pode ter dado início a uma série de mudanças que tornarão o futebol um esporte mais seguro para os seus praticantes. Tudo para que o mundo inteiro continue a ver e se orgulhar de seus capitães erguendo as taças — e os capitães, por sua vez, possam se lembrar de suas glórias quando ficarem velhinhos.
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