Até o final do primeiro semestre deste ano, o Brasil já registrava mais de 200 mil mortes decorrentes de problemas cardíacos. Os óbitos provocados por doenças do coração são, em geral, relacionados à vida sedentária, ao tabagismo e à obesidade, entre outros fatores de risco considerados tradicionais. Mas e quando deparamos com a morte súbita de um atleta, acostumado à prática diária de exercícios, não fumante e sem qualquer um dos fatores de risco clássicos? O que estaria por trás desse desfecho?
Nesses casos, o motivo pode ser um “defeito de fábrica”, as doenças cardiovasculares hereditárias. Essas desordens podem causar anormalidades na estrutura ou no funcionamento do músculo cardíaco, ou comprometer o sistema elétrico do coração, levando a arritmias graves e potencialmente fatais.
Algumas outras desordens cardiovasculares de base genética aumentam o risco de formação de aneurismas da aorta, enquanto outras elevam muito os níveis de colesterol no sangue, fazendo decolar o risco de infarto. Essas e outras condições decorrem de alterações herdadas no DNA e aumentam consideravelmente a probabilidade de complicações nas artérias e no coração.
Entre as doenças cardiovasculares hereditárias mais comuns, estão as cardiomiopatias hereditárias, ou seja, aquelas que afetam diretamente o músculo do coração (como a cardiomiopatia hipertrófica e a cardiomiopatia dilatada); as arritmias hereditárias por anormalidades no funcionamento do sistema elétrico do coração (como a síndrome do QT Longo, a síndrome de Brugada e a taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica); as doenças da aorta que resultam na formação de aneurismas (como a síndrome de Marfan); e a hipercolesterolemia familiar, que consiste na presença de colesterol muito elevado e risco de infarto em idade precoce.
O tema é tão relevante que as duas últimas edições da revista científica da Socesp estão inteiramente voltadas a doenças como essas.
Quanto mais cedo o diagnóstico for feito, mais precocemente os indivíduos podem receber tratamento adequado. Além disso, o diagnóstico preciso do paciente deve ser seguido do rastreamento da doença nos familiares, que também poderão receber acompanhamento, caso sejam afetados.
Quando se recorre aos testes genéticos
Os testes genéticos destinados ao diagnóstico de doenças cardíacas hereditárias monogênicas são painéis que avaliam os principais trechos do DNA que podem estar implicados em cada uma delas. Eles configuram uma ferramenta valiosa para o diagnóstico preciso dessas doenças.
Mais recentemente, vêm ganhando espaço nas consultas médicas exames baseados em sequenciamento genético de última geração, que ajudam a investigar doenças desse tipo principalmente em pacientes mais jovens com histórico familiar de problema cardíaco, mesmo na ausência de fatores de risco tradicionais. Um exemplo: um paciente com colesterol muito alto e história de colesterol elevado ou infarto prematuro em familiares é elegível para um teste genético pela forte suspeita de hipercolesterolemia familiar.
Existem basicamente duas situações para o emprego dos testes genéticos: para identificar a causa genética em um paciente com doença cardiovascular hereditária conhecida ou suspeita; e para predizer, em familiares saudáveis ou aparentemente saudáveis, quais deles herdaram a variante causal identificada no primeiro paciente.
Nesse segundo caso, deve-se considerar que, para a maioria das doenças cardiovasculares hereditárias, existe 50% de risco de transmissão dos genes para a prole. Assim, parentes diretos confirmados como portadores da variante patogênica estão sob risco de desenvolver a doença e devem ser submetidos a novas avaliações e informados sobre a probabilidade de transmissão para seus descendentes.
As implicações do resultado de um teste genético não são restritas à saúde daquele paciente, mas das gerações subsequentes. Além disso, é importante destacar que um resultado negativo não exclui totalmente a possibilidade de existir uma doença de base genética, mas sinaliza que uma variante causal não foi identificada.
Ao final do processo, os resultados auxiliarão os profissionais de saúde no manejo e no direcionamento do tratamento, contribuindo na orientação de condutas para o paciente e a família toda.
O progressivo aumento da disponibilidade e do acesso aos testes genéticos, bem como da compreensão do seu papel pela população, ajuda a torná-los um grande aliado da medicina de precisão. Com eles conseguimos, de fato, individualizar tratamentos.
Por fim, a comunidade científica alerta para a necessidade de políticas públicas que discutam o financiamento e a sustentabilidade do emprego de tecnologias como essa no Sistema Único de Saúde (SUS) como forma de mitigar custos financeiros e sociais com os tratamentos das doenças cardíacas e, principalmente, poupar vidas.
* Viviane Zorzanelli Rocha é cardiologista do InCor e do Grupo Fleury e assessora científica da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp)