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Um passeio pela obra de Oliver Sacks

O neurocientista inglês, que morreu em 2015, desbravou questões fascinantes sobre o cérebro humano e compartilhou essas histórias em dezenas de livros

Por André Bernardo (colaborador)
Atualizado em 30 ago 2019, 10h51 - Publicado em 17 set 2015, 17h14
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Ainda criança, Oliver Sacks não sabia o que responder quando lhe perguntavam o que seria quando crescesse. Às vezes, dizia que viraria médico — o pai era clínico geral e a mãe, cirurgiã. Outras, escritor — na adolescência, um de seus clássicos literários favoritos era o calhamaço Ulysses, do irlandês James Joyce. Mal sabia que, no futuro, seria respeitado justamente por aliar as duas profissões. Como médico, formou-se em Oxford, na Inglaterra, mas, desde 1965, passou a trabalhar nos Estados Unidos. Nos últimos anos, lecionava Neurologia e Psiquiatria na Universidade Columbia, em Nova York. Como escritor, lançou 13 livros. O mais famoso deles, Tempo de Despertar, foi adaptado para o cinema em 1990, com o ator Robin Williams interpretando o papel do neurologista britânico.

Sacks recebia cerca de 10 mil cartas por ano. A maioria trazia relatos de portadores de distúrbios neurológicos. Muitos desses pacientes — que ele não via como coitados e, sim, como heróis — viraram personagens de seus livros. Os casos eram os mais variados: iam de autismo e daltonismo a surdez e enxaqueca. Em comum, o fato de que todos esses sujeitos, sem exceção, se enredaram na difícil arte de se adaptar a condições adversas. “Podemos aprender muito com os infortúnios dos meus pacientes. As descrições do problema de um podem soar familiares para outros, que podem se sentir confortados se as histórias transmitirem resiliência. Escrevo, em parte, para dizer que nada é o fim do mundo”, disse Sacks.

Fizemos um passeio pela obra e trajetória do médico-escritor, vítima de um câncer cerebral e morto no dia 30 de agosto deste ano.

Alucinações (“A Mente Assombrada”, 2012, clique para comprar) – Pelo menos 10% da população já teve algum tipo de alucinação. É o que garante Oliver Sacks em um de seus principais livros. As mais comuns são ouvir o próprio nome ou o toque do celular. Se considerarmos aquela fase intermediária entre o sono e a vigília, a porcentagem pode chegar perto de 100%. Mas há outros tipos: pessoas cegas tendem a ter alucinações visuais e deficientes auditivos, musicais. O próprio Sacks, depois de ficar cego do olho direito, passou a ter alucinações geométricas. “Alucinações não são sinônimo de loucura”, tranquiliza. “Em geral, são causadas pela superativação dos circuitos cerebrais responsáveis pela percepção dos sentidos”, ensina.

Alzheimer e Parkinson (“A Mente Assombrada”, de 2012) – Oliver Sacks se dizia fascinado com o poder terapêutico da música. Não importa se era Verdi, Mozart ou Beethoven. Certas vezes, um paciente que não conseguia andar começava a dançar. Em outras, um sujeito que não sabia falar desandava a cantar. Por isso Sacks aconselhava seus pacientes a ouvir muita música. No caso dos portadores de Alzheimer, melodias que lhe sejam familiares, capazes de despertar memórias. Em se tratando de pessoas com Parkinson, toda e qualquer canção é bem-vinda. “O fluxo irregular do movimento dos parkinsonianos pode melhorar muito com a música, embora ela não precise ser familiar ou evocativa”, justifica.

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Amusia (“Alucinações Musicais”, 2007) – Profundo apreciador de música clássica, Oliver Sacks costumava dizer que o homem é o único animal dotado de ritmo. Por esse motivo, interessou-se pelo estudo da amusia — nome dado à incapacidade de distinguir sons, reconhecer melodias ou cantar afinado. “Che Guevara foi um exemplo famoso de amúsico: viam-no dançando mambo enquanto a orquestra tocava tango”, relata. Em 5% dos casos, a amusia é congênita. Nos demais, é adquirida, provável resultado de lesões cerebrais. O próprio Sacks relata, nos anos 1970, pelo menos dois episódios de amusia adquirida, decorrentes de fortes crises de enxaqueca.

Autismo (“Um Antropólogo em Marte”, 1995) – Quando assumiu a Ala 23 do hospital Bronx State, em Nova York, Sacks passou a cuidar de pacientes autistas. Logo, procurou descobrir a área que mais lhes despertava interesse. Para John e Michael, era a matemática. Para Nigel, a música. Para Steve, a botânica. “Alguns autistas podem ter atrasos no desenvolvimento e certa incapacidade de entender o código social, mas eram plenamente capazes e talvez até superdotados em outros aspectos”, recorda. O título do livro, aliás, foi baseado numa frase dita pela bióloga autista Temple Grandin, da Universidade do Colorado: “A maior parte do tempo eu me sinto um antropólogo em Marte”.

Cegueira (“O Olhar da Mente”, 2010) – Oliver Sacks costumava usar o poeta inglês John Milton e o escritor argentino Jorge Luís Borges como exemplos de pessoas que conseguiram, de alguma maneira, superar as limitações trazidas pela deficiência visual. “Apesar do desespero inicial da perda de visão, algumas pessoas encontram a plenitude de seu poder criativo do outro lado da cegueira”, relata. No último capítulo do livro, Sacks descreve casos de cegos que encaravam a deficiência não como uma maldição, mas como benção. Graças à famosa plasticidade do cérebro, eles desenvolveram tanto os demais sentidos que, de tão independentes que estavam, abriram mão do uso da bengala e do cão-guia.

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Daltonismo (“A Ilha dos Daltônicos”, 1997) – Um dos casos mais tocantes acompanhados por Sacks foi o de Jonathan, um pintor de 65 anos que, um dia, sofre um acidente de carro e fica totalmente daltônico. No dia seguinte, ao acordar, ele descobre que tudo ao seu redor perdera a cor. E o sentido também. Por inspiração do neurologista, Jonathan reaprende a encontrar beleza no preto, no branco e no cinza — as únicas cores que seu cérebro conseguia registrar — e decide adaptar-se à nova realidade. “Os daltônicos constroem mundos com o que têm. Eles são o centro de seu próprio mundo e não se sentem deficientes. Nos termos deles, são normais”, valoriza Sacks.

Enxaqueca (“Enxaqueca”, de 1970) – Não foi por acaso que o primeiro livro escrito por Oliver Sacks tenha sido protagonizado pela enxaqueca. Desde pequeno, ele sofria alterações visuais decorrentes de fortes crises. Por alguns minutos, perdia a noção de cor, movimento ou profundidade. Para a maioria das pessoas, enxaqueca não passa de uma dor de cabeça intensa. Para Sacks, é mais do que isso. “É quase uma enciclopédia inteira de neurologia”, diz. Na maioria dos casos, pode sinalizar algo mais grave, que precisa ser investigado pelo médico. E mais: nem sempre é a dor em si o principal sintoma do transtorno. É preciso ficar atento a náuseas, acessos de vômito e desconforto abdominal, por exemplo.

Esquizofrenia (“A Mente Assombrada”, 2012) – Oliver Sacks era o caçula de quatro irmãos. Quando completou 13 anos, um deles, Michael, começou a apresentar “delírios e surtos psicóticos explosivos”. Foi diagnosticado como esquizofrênico. Em sua biografia, Sacks relata que, desde os primeiros anos de vida, Michael sempre foi diferente: encontrava dificuldade em estabelecer contato, não tinha amigos e parecia viver num mundo próprio. Por diversas vezes, teve que ser levado às pressas para o hospital. Sacks sentia vergonha por não ter sido um irmão mais companheiro e afetuoso. “Nunca estive ali quando ele tanto precisava”, lamenta. Michael Sacks morreu em 2006, aos 78 anos.

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Letargia encefálica (“Tempo de Despertar”, 1973) – Seu livro mais famoso relata sua experiência com portadores de encefalite letárgica. De origem misteriosa, pode transformar os doentes, em casos extremos, em “belas adormecidas”. A partir da administração de L-Dopa, um remédio usado no tratamento do Parkinson, Sacks conseguiu retirá-los do estado catatônico em que viviam desde o fim da Primeira Guerra Mundial e devolver a eles suas capacidades intelectuais. A cura não foi definitiva — em um período de três anos, voltaram à letargia original —, mas a experiência demonstrou que a humanização da prática médica e a caça constante por novas abordagens terapêuticas são cruciais no restabelecimento de um doente.

Melanoma (“O Olhar da Mente”, 2010) – Em dezembro de 2005, Oliver Sacks foi diagnosticado com um raro melanoma ocular, tipo de tumor que o deixou cego do olho direito. Na ocasião, chegou a criar um “Diário do Melanoma”, onde deixava claro seu medo de o câncer se espalhar, e a fazer um “pacto” com a doença: “Leve o olho, se for o caso, mas deixe o resto de mim em paz”. Sacks tinha medo de ficar cego. Mas seu medo de morrer era ainda maior. Nove anos depois, o temor tornou-se realidade. Apesar de removido com cirurgia e combatido com radioterapia, o tumor se espalhou. “Em casos raros, ele se torna uma metástase. Estou entre os 2% dos desafortunados”, lamentou.

Prosopagnosia (“O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu”, 1985) – Os cientistas deram o nome de prosopagnosia à dificuldade crônica que alguns indivíduos têm de reconhecer rostos. O próprio Sacks era “cego para feições”. Certa vez, chegou a pedir desculpas ao próprio reflexo depois de esbarrar em um espelho. Desde então, passou a prestar atenção a características específicas dos outros, como modo de vestir, jeito de andar ou tom de voz. Mesmo assim, quando organizava festas, distribuía crachás aos convidados. “Boa parte do que chamam de timidez, desatenção ou inépcia social não passa de consequência da minha dificuldade de reconhecer feições”, confessou.

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Síndrome de Tourette (“Um Antropólogo em Marte”, 1995) – “Sempre me interessei por condições extremas, que desafiam a humanidade das pessoas e, de certa forma, as forçam a criar uma vida com uma base pouco comum”. Essa foi uma das razões que levou Sacks a estudar a Síndrome de Tourette, nome dado a um distúrbio neuropsiquiátrico que leva as pessoas a fazer movimentos repetitivos e involuntários. “Talvez eu tenha ajudado a apresentar a síndrome ao público e isso tenha gerado uma espécie de empatia”, acredita. Mais do que isso, Sacks descobriu que a música, especialmente o rock e o jazz, pode ter efeito terapêutico sobre os tiques dos portadores de Tourette.

Surdez (“Vendo Vozes”, 1989) – Quando esboçou o interesse de escrever um livro sobre o tema, Sacks ouviu das pessoas: “Não há nada de interessante na surdez, há?”. Por esse motivo, costumava repetir que “somos notavelmente ignorantes a respeito dela”. Para escrever “Vendo Vozes”, visitou instituições voltadas para estudantes surdos, como a Universidade Gallaudet, em Washington. Lá, foi interpelado por um dos alunos: “Por que você não se vê como um deficiente nos sinais?”. Depois dessa, Sacks até tentou, mas não conseguiu aprender a linguagem dos sinais. “Infelizmente, nunca fui capaz de formular mais do que algumas poucas palavras e expressões”, assumiu.

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