“Eu queria pura e simplesmente ter controle e diminuir a intensidade ou a frequência das minhas relações”, desabafa João*. “O que me levou a procurar ajuda foi a falência de todas as tentativas de interromper aquele comportamento compulsivo”, continua o morador do Rio de Janeiro de 49 anos.
Soa tristemente paradoxal, e é: para algumas pessoas, aquela que seria uma fonte de prazer se transforma em sofrimento. João não está sozinho nessa. É um entre tantos brasileiros que possuem algum grau de dependência sexual, um quadro de contornos patológicos que torna o indivíduo fixado em assistir ou praticar o dito-cujo — e que invade e atrapalha a vida pessoal, profissional e social.
Resumidamente, um sujeito é considerado compulsivo quando se torna incapaz de dominar seus pensamentos e ações, rendendo-se a um apetite sexual excessivo e potencialmente nocivo. A vida passa a girar em torno do sexo.
“Mas há uma diferença entre alguém sexualmente muito ativo e o compulsivo. O primeiro busca satisfazer sua necessidade sempre, mas o faz com prazer e conseguindo exercer um controle”, diferencia a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Departamento de Sexologia da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “Para o segundo, porém, não há prazer envolvido necessariamente. O que ele procura aplacar é uma ansiedade ou angústia diante de uma necessidade incontrolável.”
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A compulsão sexual é um tema que, na esteira da alta oferta de conteúdos eróticos e pornográficos na internet, incendiou-se mundo afora, passando a receber mais atenção dos especialistas.
Apesar dos avanços científicos recentes, as razões pelas quais o problema se desenvolve ainda não são totalmente esclarecidas. Entre as hipóteses, estão questões como desequilíbrio nos neurotransmissores, uso de álcool e drogas, histórico de abusos sexuais ou físicos na infância e doenças que afetam o circuito nervoso.
“Esse padrão de comportamento autodestrutivo acaba prejudicando todas as áreas da minha vida: pessoal, familiar, profissional e acadêmica”, diz João*, do Rio de Janeiro.
Para a psicanálise, a compulsão é um processo de origem inconsciente. “O indivíduo procura justificá-la como algo motivado na atualidade, porém seus significados são desconhecidos, pois remontam a tempos psíquicos remotos”, explica a terapeuta Eliana Riberti Nazareth, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
As compulsões estão associadas ao alívio imediato da angústia, o que torna o tratamento difícil. “O sexo é utilizado como um remédio, dizia uma paciente. Medicamento para enfrentar o medo, a ansiedade e a depressão. Funciona como antídoto frente a sensações desconhecidas, mas potentes e ameaçadoras”, expõe Eliana. As sessões de psicanálise buscam ressignificá-lo e tirá-lo das garras da impulsividade.
Por dentro do problema
A ciência não define um número exato de relações sexuais por dia ou por semana correspondente a uma quantidade adequada ou saudável. É algo subjetivo e individual demais…
Contudo, o comportamento se torna compulsivo quando o cotidiano do homem ou da mulher é guiado ou interrompido toda hora pela necessidade de se satisfazer. As coisas se complicam aqui porque a saúde sexual ainda é tratada como tabu, de modo que as vítimas evitam a ajuda especializada tão cara a um diagnóstico e tratamento corretos.
Não à toa, os casos são identificados mais tarde, na faixa dos 30 anos de idade. Em grande parte, o desejo excessivo tende a ser confundido com outros quadros clínicos, como distúrbios hormonais ou alterações neurológicas.
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A demora na avaliação médica pode levar a uma série de complicações, como risco aumentado de infecções sexualmente transmissíveis, queda da imunidade e gravidez indesejada. Outros empecilhos incluem perda de emprego, danos financeiros e dificuldades para a manutenção de relacionamentos afetivos.
Um divisor de águas na história da compulsão sexual certamente é o acesso à internet. Hoje, ver fotos e vídeos com nudez explícita ou pornografia costuma ser o primeiro contato com o universo das intimidades. Antes dos anos 2000, o consumo desse tipo de conteúdo se dava por meio de revistas e filmes exibidos na madrugada.
Agora, tudo isso se encontra a um clique ou um toque no celular, e os adolescentes podem desfrutá-lo cada vez mais cedo. Uma análise conduzida pela organização não governamental Common Sense com quase 1,4 mil americanos de 13 a 17 anos reporta que 73% já haviam tido contato com materiais de teor adulto.
Em estudo da instituição de pesquisa Dignify, no Reino Unido, com mais de 4 mil jovens de 14 a 18 anos, quatro em cada dez afirmaram ter visto pornografia. A idade média do primeiro contato foi de 12 anos, sendo que 32% disseram ter visualizado com 11 ou menos. Ao todo, 64% voltaram a assistir e quase um em cada cinco diz ter transformado isso em hábito, enquanto 13% reconhecem uma espécie de vício.
“Não há dúvida de que o consumo de pornografia aumentou nos últimos 20 anos. Enquanto a maioria dos jovens já consumiu algo em sites, estudos mostram que 80% das mulheres acima de 65 anos, por exemplo, nunca viram conteúdos do tipo”, expõe a psiquiatra Anna Lembke, autora do livro best-seller Nação Dopamina (Vestígio), que realiza um escrutínio sobre comportamentos viciantes e o uso de medicamentos prescritos para conter as dores na alma dos cidadãos do século 21.
A questão é que o acesso desmedido a fotos sensuais em redes sociais e vídeos pornôs está mexendo com as ideias de sexualidade da nova geração. Eles querem sempre mais — não necessariamente na vida real — e criam padrões distantes da realidade, que, somados, tornam sua vivência sexual insatisfatória.
Assim, embora a pornografia não seja causa direta da compulsão, pode potencializar o problema. Como acontece com qualquer droga, o consumo abusivo interfere em nosso sistema de recompensa cerebral. De tal forma que prazeres mais modestos deixam de ser gratificantes e é preciso caçar artifícios cada vez mais radicais. Um comportamento que, segundo Anna, abre brechas a ansiedade e depressão.
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“O cérebro adolescente é especialmente vulnerável, porque os circuitos neurais ainda não estão totalmente desenvolvidos, especialmente o córtex pré-frontal, que atua nas tomadas de decisão”, afirma. Entre as consequências da exposição precoce a esse universo estão prejuízos para a distinção entre o real e a ficção, inclusive associando-se o prazer a algo ligado a práticas violentas ou degradantes.
“A pornografia muitas vezes representa uma imagem negativa da sexualidade e objetifica outras pessoas como um meio para um fim, em vez de seres humanos com direito próprio. Isso prejudica a capacidade de desenvolver relações sexuais saudáveis com pessoas reais”, ressalta a médica e professora da Universidade Stanford, nos Estados Unidos.
O duro é que, após o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, a busca por esses conteúdos e tais mudanças comportamentais se tornaram ainda mais flagrantes.
A busca pelo controle
Para João, o personagem do início desta reportagem, a busca pelo tratamento aconteceu após um longo processo de negação. “Achava que esse comportamento era algo esperado, que não havia nada de errado, não era algo ilegal ou que prejudicava as pessoas, segundo a minha concepção na época”, conta.
Desde 2001, ele frequenta as reuniões do grupo Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (D.A.S.A.), que dispõe de um programa de 12 passos de recuperação. “Encontro ali uma sala de espelhos, com outras pessoas que têm a mesma dificuldade. Seus relatos muitas vezes trazem soluções para desafios que estou enfrentando naquele momento”, destaca.
Não é raro que o problema se desenvolva em associação a outras formas de dependência, como vícios em jogos, compras, álcool e drogas, por exemplo. Foi o caso de Marcos*, de 60 anos, morador de Santos, no litoral de São Paulo. “Sou alcoólico também em recuperação. Em maio, vai fazer 34 anos que parei de beber”, afirma.
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Ele relata que chegou a passar quase 12 horas seguidas assistindo a pornografia nos momentos mais graves da compulsão.
“Apesar de não ter relação sexual há anos, quando tinha, eram inúmeras, várias vezes madrugada afora. O mesmo ocorria com o consumo de pornografia” Marcos*, morador de Santos (SP).
Além de participar do mesmo núcleo de apoio, Marcos também faz acompanhamento psiquiátrico. “Já cheguei a ficar três anos em abstinência da pornografia. Agora, estou indo para o meu terceiro mês”, diz.
Ele conta que um dos principais desafios atuais é superar a chamada anorexia emocional, que consiste basicamente em uma grande dificuldade de estabelecer relações devido a uma rejeição compulsiva de dar e receber nutrição social, sexual e afetiva. “A minha maior dificuldade hoje é desenvolver um relacionamento saudável, estável e amoroso”, afirma.
Além do compartilhamento de vivências, o controle da compulsão sexual se beneficia da psicoterapia e do uso de remédios receitados por um psiquiatra. “Frequentemente, vamos dispor de medicamentos que diminuem ou restringem a libido, mas sem anulá-la. A ideia é fazer uma adequação da atividade sexual, e não fechar esse aspecto na vida do indivíduo”, pontua Carmita.
Entre os fármacos mais utilizados estão os antidepressivos, que contam com o efeito de reduzir o desejo e retardar o orgasmo. Em alguns casos, pode ser necessário recorrer à naltrexona, um composto que ainda é utilizado na terapia do alcoolismo e outras formas de dependência. Os estabilizadores de humor, por sua vez, são considerados recursos adicionais para abafar os rompantes de compulsão.
O tratamento, salientam os experts, é de longo prazo e varia de uma pessoa para outra, dependendo do nível de gravidade e da resposta individual.
“Pode-se adotar um período de abstinência de pelo menos quatro semanas, sem pornografia e sem orgasmos consigo ou com outras pessoas, combinado com a psicoterapia individual e em grupo, o aconselhamento de casais e famílias e, eventualmente, a prescrição de medicações”, esclarece Anna. “A ideia é pautar um retorno ao envolvimento sexual com limites claros para o que constitui práticas saudáveis”, completa a médica.
A revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2018 incluiu o comportamento sexual compulsivo na lista de transtornos do controle de impulsos. A mudança tornou possível formular protocolos de tratamento mais alinhados com a compreensão clínica da condição.
“À medida que a classificação incorpora um novo diagnóstico, ela vai levar os pesquisadores a trabalharem em uma direção mais focada. E, com isso, há chances de melhores resultados”, comenta Carmita.
De acordo com a OMS, os homens têm maior probabilidade de serem diagnosticados do que as mulheres — e elas, por sua vez, têm mais chances de padecer desse comportamento após um histórico de abuso sexual na infância. Não é pouca gente a encarar o drama: segundo um levantamento realizado em 42 países, 5% da população apresenta algum nível de compulsão sexual.
Não há uma “cura”, no sentido clássico, mas é possível atar o problema. E, nesse sentido, quanto antes ele for identificado, melhor. Para que o diagnóstico aconteça efetivamente, porém, é preciso naturalizar as discussões sobre saúde mental e sexual. Enquanto o assunto for tratado como tabu, as pessoas perderão o lado bom da vida e continuarão sofrendo em silêncio.