Com tantas notícias sobre mutações do Sars-Cov-2 fazendo estragos, fica a dúvida: as vacinas da Covid-19 também funcionam contra elas? A resposta é complexa. Para resumir bem, cada fórmula tem respondido de um jeito diferente às variantes do coronavírus, e a maioria dos estudos feitos até agora são limitados.
O que se sabe com mais certeza é que os imunizantes já aplicados em larga escala, como os da Pfizer, Moderna e da AstraZeneca, protegem da variante B.1.1.7, identificada na Inglaterra em setembro de 2020. “Houve redução de hospitalizações e mortes depois do início da vacinação no Reino Unido, Israel e Estados Unidos, países onde ela predomina”, aponta o virologista José Eduardo Levi, da Dasa e da Universidade de São Paulo (USP).
Para a P.1, ligada ao Amazonas, as evidências são preliminares, para não dizer insípidas. O Instituto Butantan anunciou que a Coronavac é capaz de neutralizar nossa variante, baseado em testes feitos com anticorpos de 35 vacinados. A pesquisa ainda não foi publicada e há mais amostras em análise, o que demanda uma cautela extra na interpretação dos dados.
Outro estudo não revisado, esse conduzido com o sangue de oito voluntários, sugere ineficácia da fórmula diante dessa ameaça. Mas o número extremamente pequeno de participantes afeta a relevância do resultado. Além disso, exames sorológicos feitos após a vacinação desses indivíduos não acusaram a presença de anticorpos. Isso pode indicar que, neles, as doses não geraram uma resposta imune pra começo de conversa. Lembre-se: é normal que, em alguns poucos casos, a vacina não pegue (é uma falha, assim por dizer).
Já a Covishield (Oxford/AstraZeneca), agora fabricada pela Fiocruz, e a Cominarty, da Pfizer, passaram pela mesma prova e demonstraram uma eficácia reduzida frente à P.1, mas talvez suficientemente boa ainda. O trabalho que traz essa informação não foi publicado nenhum periódico científico – ou seja, suas conclusões ainda precisam ser confirmadas por outros pesquisadores.
Na mesma linha, a fórmula da Janssen (divisão da Johnson & Johnson), que deve chegar ao Brasil este ano, anunciou por comunicado de imprensa que sua vacina foi testada em locais onde a P.1 provavelmente já era predominante e, portanto, sua eficácia se manteria igual.
Nesse contexto, a variante do coronavírus mais preocupante é a B.1.351, que surgiu na África do Sul em agosto do ano passado. Em um estudo com mais de 2 mil pessoas, publicado no New England Journal of Medicine (NEJM), a Covishield não foi capaz de impedir casos leves e moderados de Covid-19. Tanto que o governo do país suspendeu seu uso.
“É um recado desanimador para nós, dada a semelhança genética entre as variantes de lá e daqui, que têm mutações em comum. Mas a P.1 não parece ter um impacto tão negativo como esse”, aponta Levi.
Como se mede a ação da vacina contra uma nova variante?
A melhor maneira é analisar um grande número de indivíduos vacinados. Se uma boa parte começa a adoecer semanas depois de completar o esquema de doses, surge a suspeita da ineficácia, seja por que a imunidade caiu com o tempo (assunto para outra reportagem), seja pelo surgimento de uma nova variante.
Como esse tipo de estudo leva tempo, a maioria das evidências até agora vêm de ensaios de neutralização. Aqui, o agente infeccioso mutante é colocado em contato com anticorpos extraídos do sangue de indivíduos vacinados. Se essas unidades de defesa não conseguirem frear o vírus em laboratório, é um mau sinal. “Só que isso representa apenas uma pequena parte da complexa resposta do sistema imune”, explica o virologista Paulo Brandão, da USP e blog Virosfera.
Além desses soldados de defesa, existe outro pelotão completamente diferente no organismo. Enquanto os anticorpos capturam os vírus antes de infectarem as células, a resposta celular identifica e destrói as que já foram invadidas.
Essa linha de frente do nosso sistema imunológico é menos famosa, mas parece ser tão importante quanto os anticorpos para combater a Covid-19, especialmente seus quadros mais graves. Uma pesquisa ainda não revisada sugere que a vacina da Pfizer desperta tal mecanismo mesmo frente às variantes. E aqui há um fato alentador sobre a dose de Oxford, que reforça o quão inicial nosso conhecimento sobre o tema é.
Olha só: o mesmo estudo que flagrou a ineficácia para casos leves e moderados na África do Sul mostrou, em uma segunda etapa feita em laboratório, que os linfócitos T CD4 e CD8 (que participam da resposta celular) são recrutados mesmo frente à variante local. Só que, como não houve casos graves ou mortes nos dois grupos avaliados (vacinados e indivíduos que receberam um placebo), não é possível cravar a importância disso para o curso da doença.
E esse é, aliás, outro ponto a se considerar. “Pode ser que uma vacina não funcione bem apenas para casos leves, mas proteja contra os quadros severos. É a prática que nos dirá”, aponta o infectologista pediátrico Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Vacinas podem ser adaptadas
Como vimos, até agora a eficácia dos imunizantes parece satisfatória mesmo em face das mutações do coronavírus, com exceção da história das doses da AstraZeneca na África do Sul. Contudo, se isso mudar, será necessário atualizar a vacina. A boa notícia: a reformulação seria mais rápida do que uma produção do zero.
Na verdade, as fabricantes mundo afora já estão se adiantando para uma eventual mudança em seus produtos. A Agência Europeia de Medicamentos lançou uma diretriz aos fabricantes para nortear alterações, exigindo, por exemplo, um novo estudo clínico antes da aprovação.
Não seria a primeira vez que algo do tipo acontece. A vacina contra a gripe é refeita rapidamente todos os anos para abranger as cepas do influenza que mais circulam naquela temporada. Nesse caso específico, nem é preciso conduzir mais pesquisas, porque o produto já é usado há muito tempo, com excelente perfil de segurança.
No contexto da Covid-19, um caminho para essas mudanças são os imunizantes conjugados, que incluem o “vírus original” e seus derivados mais incidentes em um determinado local e período. “Outra possibilidade é aumentar a concentração do antígeno, porque isso poderia compensar a queda da eficácia”, explica Kfouri.
E pode até ser que as vacinas em desenvolvimento já cheguem tendo como molde as mutações mais prevalentes do momento. A Butanvac, anunciada recentemente pelo Instituto Butantan, será feita a partir da variante P.1., por exemplo.
Com variante ou sem, precisamos de vacinas
Todos os especialistas ouvidos pela reportagem concordam que o Brasil precisa ampliar de maneira urgente o ritmo da vacinação, independentemente da linhagem em circulação. Primeiro porque as indicações atuais sugerem uma proteção ampla.
Fora isso, somos atualmente um celeiro de variantes. “A alta circulação atual do vírus facilita o aparecimento de mutações de comportamento imprevisível, que podem escapar da imunização, por exemplo”, pontua Levi. “No momento, somos um perigo internacional”, conclui. Uma vacinação maciça e veloz, associada às boas e velhas medidas sanitárias, pode conter inclusive as mutações do coronavírus.