Ele fica no lado esquerdo do tórax, pesa em torno de 340 gramas e é do tamanho de um punho fechado. Bate, em média, 72 vezes por minuto — nos recém-nascidos, pode chegar a 120 — e, a cada hora que passa, bombeia 400 litros de sangue. De “tum-tum” em “tum-tum”, o coração humano trabalha 24 horas por dia, sete dias por semana, sem direito a descanso no sábado, no domingo ou no feriado.
Apesar de tudo que faz por nós, digamos que nem sempre cuidamos bem dele — e a negligência se escancarou com a pandemia. “Em geral, o brasileiro só lembra que tem coração quando sente dor no peito ou falta de ar”, lamenta o médico Celso Amodeo, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
Não pode ser assim! As doenças cardiovasculares continuam sendo a principal causa de morte no mundo. No Brasil, três em cada dez óbitos são por infarto ou por acidente vascular cerebral (AVC), desfechos cujas origens são bem parecidas. Juntos, eles respondem por 400 mil vidas perdidas — o dobro do total de mortes por todos os tipos de câncer.
O perigo é democrático e independe de gênero e classe social. Um terço dos casos fatais envolve mulheres — elas até podem infartar menos, mas o ataque cardíaco tende a ser mais letal nesse grupo.
“Na maioria das vezes, o sujeito tem hipertensão, diabetes e colesterol alto, só que não sabe”, adverte o cardiologista Cláudio Domênico, autor do livro Em Suas Mãos — Escolhas e Renúncias para Viver Melhor e com Mais Saúde, da Editora Intrínseca (clique aqui para comprar). “Muitos fatores de risco são assintomáticos e silenciosos”, alerta.
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Não é por menos que, tragicamente, o infarto pode ser a primeira manifestação de um problema cardiovascular. E, aí, é aquele sufoco: uma artéria do coração é obstruída, dificultando a passagem de sangue para o músculo cardíaco, que sofre e emite pedidos de socorro.
Os sintomas mais recorrentes, você já deve ter ouvido, são dor aguda no peito, que irradia para o braço, a mandíbula e as costas e, em geral, perdura por mais de 20 minutos, além de falta de ar. Há outros, menos comuns, como sudorese, tontura e cansaço. Uma pequena parcela dos infartos nem sinal dá — eles são traiçoeiramente silenciosos.
Pressão alta, obesidade, tabagismo… Os mesmos fatores que desencadeiam o ataque cardíaco podem preparar o terreno para um AVC. Ele ocorre quando os vasos que levam sangue até o cérebro entopem ou se rompem — os tipos isquêmico e hemorrágico, respectivamente.
Os sintomas variam de acordo com a extensão e a localização do atentado cerebral. Incluem paralisia ou formigamento em um dos lados do corpo, especialmente no rosto, no braço ou na perna, dor de cabeça súbita, intensa e sem causa aparente, dificuldades para andar e falar etc.
“Quanto mais rápido o paciente for diagnosticado e tratado, maiores serão suas chances de sobrevivência e recuperação”, afirma o cardiologista Bernardo Noya, líder médico do HCor, na capital paulista. Essa é uma lógica que se aplica tanto ao infarto como ao AVC.
Um cenário que já era preocupante se agravou com a pandemia de Covid-19. Muita gente, por medo de pegar o vírus, preferiu ficar em casa a ir a um hospital mesmo com sintomas aparentes. Outros bem que tentaram, mas não encontraram atendimento adequado e leitos disponíveis em função da sobrecarga imposta pela nova infecção. Conclusão: o número de mortes em domicílio por doenças cardiovasculares aumentou 32%.
Passou de 17,7 mil entre março e junho de 2019 para 23,3 mil no mesmo período de 2020. No caso de óbitos por doenças cardiovasculares inespecíficas, como morte súbita ou parada cardiorrespiratória, o aumento foi ainda maior: 90%.
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O fenômeno não foi exclusivo do Brasil. Lá fora, houve queda de até 70% nas assistências hospitalares em países como Estados Unidos, Itália e Reino Unido. O que pode ter a ver com outro dado: segundo estudo publicado pela Sociedade Europeia de Cardiologia, os ataques cardíacos durante a pandemia tiveram consequências mais graves do que aqueles ocorridos anteriormente.
“Na pandemia, o atendimento médico diminuiu significativamente, tanto no setor público quanto no privado”, contextualiza a cardiologista Aurora Issa, chefe do corpo clínico do Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio de Janeiro.
“Muitas mortes poderiam ter sido evitadas se os pacientes tivessem recebido atendimento médico em tempo hábil e em condições normais”, completa. O índice de óbitos por causas cardiovasculares — em casa ou no hospital — se elevou significativamente com a crise da Covid-19.
Na comparação entre os meses de março e maio de 2019 e o mesmo período de 2020, o aumento foi de até 132%, segundo levantamento coordenado pela SBC contemplando as seis capitais mais castigadas pelo coronavírus: Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Fortaleza, Belém e Manaus.
Dessas, a que registrou o maior número de óbitos foi a capital do Amazonas: 132% a mais do que em 2019. Em seguida, estão Belém (126%), Fortaleza (87%) e Recife (71%). Rio e São Paulo foram as “menos” impactadas, com 38 e 31%.
Não foi só isso. Um número expressivo de brasileiros desmarcou consultas e suspendeu exames. Até procedimentos mais complexos, como angioplastias coronarianas, que consistem na colocação de stents (uma espécie de mola metálica) para desobstruir as artérias, sofreram uma redução de 70%.
“Mesmo diante de sintomas típicos de infarto, muitos pacientes não procuraram socorro médico”, constata o cardiologista intervencionista Ricardo Costa, presidente da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI). “Quando finalmente procuraram, o coração já estava debilitado e os danos eram quase irreversíveis”, relata.
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Uma pesquisa realizada pela Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), em parceria com a Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL), dá uma boa noção do pânico da população diante do coronavírus: 43% dos participantes cancelaram suas consultas e 58% deixaram de fazer exames — desses, 53% tomaram a decisão por conta própria, sem ouvir um especialista.
Para piorar a situação, 51% dos entrevistados admitiram estar comendo mais e 31% praticando menos exercícios que o habitual. “Durante o isolamento, muitas pessoas, no limite do estresse e do sedentarismo, aumentaram o consumo de álcool e passaram a fumar mais que antes”, aponta o cardiologista Marcelo Franken, gerente médico de Cardiologia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
“Tudo isso, junto e misturado, se transformou em uma grande bomba-relógio para o coração”, enfatiza.
Procedimentos considerados importantes para a detecção precoce e o tratamento preventivo dos males cardíacos também foram afetados. Entre março e maio de 2020, os primeiros três meses de pandemia, o total de exames de sangue, eletrocardiogramas e testes ergométricos, itens de série do check-up cardiológico, sofreu queda de 30, 41 e 59%, respectivamente.
O sumiço dos pacientes das unidades de saúde motivou a SBHCI a lançar a campanha O Infarto Não Respeita Quarentena. A iniciativa, ao que parece, deu certo. Um ano e seis meses depois do início da pandemia, o número de procedimentos de emergência, pelo menos em hospitais da rede pública, está mais próximo do normal.
Quem também lançou um movimento de conscientização em meio à Covid-19 foi a Federação Mundial do Coração. Seu lema é “Use o Coração para Vencer as Doenças Cardiovasculares”. “Em geral, campanhas desse tipo costumam surtir efeito. Quando são divulgadas em meios de comunicação, como rádio, jornal e TV, tendem a ser altamente efetivas porque têm um alcance muito grande”, avalia Costa.
Ainda assim, todo cidadão é convocado a se mexer e, se não estiver com as consultas e exames em dia, procurar um posto de saúde ou seu médico de confiança para checar como andam a pressão, o colesterol, o ritmo cardíaco…
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Desativar uma bomba-relógio nas artérias antes de suas terríveis consequências é possível, mas nem sempre o caminho é fácil. Os médicos listam sete fatores de risco para infarto e AVC que são modificáveis: consumo elevado de álcool, colesterol alto, diabetes, estresse crônico, hipertensão, sedentarismo/obesidade e tabagismo. Já três fatores não dá para alterar: idade, sexo e hereditariedade.
Segundo estimativas, 80% dos casos de infarto e AVC são causados por elementos do primeiro grupo. “Qual é o inimigo número 1? Bem, não há um só. O diabetes e o tabagismo, por exemplo, são bastante perigosos, mas os outros também requerem cuidados. O inimigo, na verdade, é uma quadrilha”, raciocina Franken.
A boa notícia é que dá para intervir nessa quadrilha. Além do acompanhamento médico, a prevenção passa por mudanças no estilo de vida. Para início de conversa, tem que limitar pra valer a ingestão de álcool e largar o cigarro.
À mesa, fora moderar no sal, deve-se reduzir a cota de alimentos ultraprocessados ou ricos em gordura trans e saturada e aumentar a de frutas e hortaliças — quem amplia o consumo de vegetais vê o risco cardiovascular cair 30%. “Nunca falo para o paciente fazer dieta. Prefiro dizer reeducação alimentar. Dieta passa a ideia de algo com início, meio e fim. Reeducação alimentar é para a vida toda”, conta Amodeo.
Tão importante quanto prestar atenção no prato é reservar pelo menos 30 minutos do dia para atividades físicas. Há indícios de que o sedentarismo mata tanto quanto o tabagismo. Para manter o coração tinindo, vale qualquer movimento: desde ir de bicicleta ao trabalho até usar a escada em vez do elevador.
No consultório, quando lhe perguntam qual é o melhor exercício, Domênico não vacila: o que dá mais prazer. “Pessoalmente, gosto de natação. Mas, se o sujeito não gosta de nadar, vai ficar contando azulejo na piscina. O melhor a fazer é procurar outra atividade, como dança de salão ou trilha na mata”, sugere o cardiologista.
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Fora a repaginação dos hábitos, não dá para se esquecer de um bom check-up. Não há consenso entre os especialistas sobre a idade certa para fazer o primeiro exame cardiológico com finalidade preventiva. Alguns sugerem aos 20 anos. Dos 20 aos 35, o ideal é que o check-up seja realizado a cada cinco anos. Dos 35 aos 50, a cada três. E, a partir dos 50, anualmente.
“Não há um único modelo, igual e padronizado, para todo mundo. A avaliação precisa ser individualizada”, pondera a cardiologista Ana Amaral, coordenadora da Emergência do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro. “O ideal é que pacientes que já sofreram infarto ou têm histórico na família sejam avaliados a cada seis meses”, destaca.
Embora check-up não seja receita de bolo, alguns ingredientes não podem faltar. Começa com a anamnese, isto é, com o médico perguntando e ouvindo o histórico pessoal e familiar do paciente. Depois tem o exame clínico, em que, entre outras coisas, o profissional afere a pressão arterial e mede a circunferência abdominal.
Daí o indivíduo sai do consultório com uma relação de testes laboratoriais, como exames de colesterol e glicemia, e, dependendo do caso, com a prescrição de um eletrocardiograma, um teste ergométrico e/ou um ecocardiograma. O número de métodos de diagnóstico recrutados muda conforme o histórico, os sintomas e os fatores de risco de cada um.
“Ainda hoje, persiste uma ideia equivocada de que as doenças cardiovasculares atingem mais os homens. Por essa razão, as mulheres demoram mais para procurar atendimento”, alerta a cardiologista Paola Smanio, do Grupo Fleury Medicina e Saúde.
De acordo com a médica, assim como elas fazem exames de rotina para a prevenção do câncer de mama e do de colo de útero, deveriam fazer o mesmo para se precaver de infarto e AVC. E, eis um recado que se estende aos homens, não dá para esperar a pandemia terminar para tomar uma atitude e se cuidar de verdade.
O que fazer por ele
Pequenas mudanças de hábito já trazem grandes melhorias e proteção ao coração. E uma boa parceria com o médico completa o esquema
Marque uma consulta: O acompanhamento pode ser feito com clínico geral, médico da família, geriatra e, claro, cardiologista. O início vai depender do histórico pessoal e familiar.
Fique de olho no peso: Vale a pena monitorar seu índice de massa corporal (IMC) — o ideal é ficar abaixo de 25 — e checar com o profissional a circunferência abdominal.
Controle o colesterol: Em altos níveis, ele está por trás das placas que entopem os vasos. Em equilíbrio, dá para reduzir em 33% o risco de infarto e em 20% o de AVC.
Trate o diabetes: Ele também maltrata as artérias. Com um exame de ponta de dedo ou laboratorial, você consegue saber a quantas anda a taxa de glicose no sangue.
Acompanhe a pressão: A medida considerada normal é a de 12 por 8. Verifique pelo menos uma vez por ano, mesmo sem sintomas — pelo bem do cérebro, do coração, dos rins…
Coma com equilíbrio: Consuma no mínimo cinco porções de frutas, legumes e verduras diariamente. E modere em alimentos ricos em sódio e gordura saturada e ultraprocessados.
Pratique exercícios: Não sabe pedalar, corra. Não aguenta correr, caminhe. Não gosta de caminhar, nade. Reduza o tempo parado e faça ao menos 30 minutos de atividade física por dia.
Deixe de fumar: Ou nem comece! Não há limite seguro quando se fala em tabaco — e isso se aplica a cigarro normal, eletrônico e cia. Existe tratamento para vencer o vício.
Cuide da mente: Raiva, tristeza e solidão, além do estresse, são fatores emocionais que aumentam o risco de piripaques. Então procure relaxar e se divertir no dia a dia.
Fuja da poluição: Não é fácil para quem mora em grandes cidades, mas vale o esforço. Os poluentes no ar elevam a pressão e a frequência cardíaca e inflamam os vasos.
Busque mais silêncio: A poluição sonora também causa estragos ao coração. A exposição ao ruído alto e excessivo aumenta a produção de cortisol, o “hormônio do estresse”.
Durma bem: Repousar menos de seis horas por noite catapulta em até cinco vezes o risco de ter pressão alta — e ainda rende maior propensão ao ganho de peso.
Previna infecções: Sim, o risco de infarto aumenta depois de uma gripe ou pneumonia. Então, além das medidas básicas de higiene, mantenha a vacinação em dia.
Não pare o tratamento: Hipertensão, colesterol alto, diabetes… Não importa. Siga a prescrição e tome os remédios corretamente, só parando ou trocando sob orientação médica.
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No rastro dos perigos
Os exames vão depender do histórico e do risco do paciente, mas tudo começa com uma boa consulta médica
- Exames de sangue
Medem colesterol, glicemia, triglicérides, marcadores inflamatórios… - Eletrocardiograma
Eletrodos presos ao peito verificam a atividade elétrica do coração. - Teste ergométrico
Numa esteira, avalia o sistema cardiovascular sob esforço. - Ecocardiograma
É um ultrassom do coração: analisa tamanho, fluxo e as estruturas do órgão. - Cintilografia
É um método que se vale de uma injeção de contraste para captar imagens do coração. - Exames de imagem
Raios X do tórax, tomografia e ressonância são pedidos caso a caso. - Holter e Mapa
Você fica 24 horas com um aparelho: o primeiro registra os batimentos; o outro a pressão. - Cateterismo
Um cateter é levado até as artérias do coração para apurar a existência de entupimentos.
Não deixe para depois
Sentiu algo suspeito? Vá ao hospital. Atenção aos sintomas, ao tratamento e à vacinação é imprescindível
Procure assistência médica
Se alguém da família relatar falta de ar, dor no peito ou sensação de desmaio que não passa, não perca tempo. Coloque a pessoa em repouso, ligue para o Samu pelo 192 ou leve-a até o pronto-socorro mais próximo. O ideal é que o atendimento médico seja feito em até seis horas.
Sintomas que merecem atenção:
- Dor no peito, que irradia para braço, mandíbula e costas
- Falta de ar
- Sudorese
- Tontura
- Desmaio
Tome os remédios prescritos
Nem sempre dieta e exercício nos livram das ameaças. Nessas horas, quem salva são os medicamentos. “Na prática, tomar remédios acaba sendo mais fácil que mudar o estilo de vida”, nota o cirurgião cardíaco Fernando Lucchese, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Remédios:
- Colesterol alto
- Hipertensão
- Diabetes
- Obesidade
- Coagulação
- Arritmia
Não deixe de se vacinar
E não só para Covid-19! Os imunizantes têm um efeito colateral inusitado: ajudam a reduzir o risco de infarto. Um estudo canadense demonstrou que a vacina da gripe baixou em 50% a probabilidade de um ataque cardíaco na comparação com os não vacinados.
Vacinas importantes:
- Gripe
- Pneumonia
- Covid-19