Torture os números e eles logo confessarão o que você quiser. Fato. Os epidemiologistas se inflamam quando uns e outros, leigos ou não, cruzam estatísticas a esmo só para defender uma ideia. Os dados abaixo, sobre a epidemia de obesidade, deixam evidente uma realidade da pesada no Brasil e no mundo:
1,9 bilhão – é o número de pessoas acima do peso no mundo. Ele engordou: em 2008, eram 1,4 bilhão.
23% – é quanto o problema cresceu nos últimos nove anos no Brasil.
2 trilhões de dólares – é o que sobe, por ano, o gasto global para tratar a obesidade.
Já abaixo, fica gritante o crescimento das dores crônicas e o fardo que tem sido custear seu tratamento. Ambos os problemas avançam, aparentemente lado a lado, sem dar alívio nos últimos tempos.
20% da população mundial adulta tem dor crônica. O aumento de queixas é de arder: até 10% ao ano.
1 em cada 5 brasileiros sofre de dor crônica. Mas olha o dado da pesada: a proporção é quase o dobro entre os obesos.
1/3 a mais é o que os EUA desembolsam para aliviar suas dores em relação às despesas com o câncer.
Seria afoito interpretar que os números de um lado resultam diretamente nos outros. Pesa a lembrança de que a obesidade tem vários fatores por trás – e alguns deles também são gatilhos de sensações dolorosas. Sem contar que os quilos extras causam outras doenças capazes de pinicar, latejar…
A percepção da dor, para complicar de vez, é individual – a que é leve para você pode ser insuportável para mim. “Apesar desse emaranhado, ganha força a hipótese de que o disparo das duas condições está interligado”, conta o neuroendocrinologista Malebranche Carneiro, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). E o expert não se refere só a articulações massacradas pela sobrecarga de um corpanzil, mas também a dores que, antes, não eram consideradas na balança, como as de cabeça.
Dor crônica e obesidade
“Dor crônica, por definição, é aquela recorrente por um período maior do que três meses”, esclarece o anestesiologista George Freire, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. E é dela que estamos falando quando a obesidade espreita.
Diferentemente do desconforto agudo, não se trata de um mecanismo de proteção, como quando você sente o ardor do fogo e afasta a mão da panela ou se contorce de cãibra a fim de preservar o músculo fatigado de uma lesão. É como uma dor inútil.
Malvada, parece existir só para nos fazer padecer. E os quilos a mais reforçam essa espécie de sadismo biológico, como uma agravante. Ou são, em uma tese mais ousada, uma de suas origens – eis, de novo, a questão.
“A dor crônica envolve tanta coisa que não podemos dizer que só tenha a ver com os ponteiros da balança”, pondera Freire. “Tem o fator hormonal, que aumenta a sensibilidade das mulheres, o sono insuficiente, o estresse, a falta de exercício, que estimularia o sistema nervoso a produzir seus analgésicos naturais…”, enumera.
É quase um nó cego para a ciência desatar. “Afinal, todos esses fatores estão igualmente relacionados à obesidade”, lembra Malebranche Carneiro. E perdão, mas o peso…bem, ele pesa.
“No Brasil, as crises de enxaqueca são de 20 a 50% mais assíduas em obesos”, estima o neurologista Carlos Eduardo Altieri, que coordena a área de cuidados ao paciente com dor no Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista. “Tudo bem que pessoas com obesidade geralmente incluem na dieta porções generosas de alimentos muito gordurosos e processados que também são gatilho das crises”, ameniza. “Só que deve existir algo a mais”, volta a cutucar.
Da barriga ao cérebro
A neurologista americana Barbara Lee Peterlin, que lidera o Centro de Pesquisas sobre Dor de Cabeça na Universidade Johns Hopkins, não se cansa de martelar essa suspeita nos ouvidos de seus colegas. “Ainda não sabemos direito como isso acontece, até porque existe uma tremenda dificuldade para realizar estudos controlados, em que todas as variáveis são consideradas, como comparar obesos enxaquecosos que comem determinado tipo de alimento ou outro… Mas acredito firmemente que o elo perdido sejam as substâncias inflamatórias”, diz à SAÚDE.
“Essas substâncias são as mesmas que encontramos agindo no sistema nervoso de qualquer indivíduo com enxaqueca, acima do peso ou não”, completa Barbara, que já publicou mais de 60 artigos sobre o tema. Entre os seus achados, depois de analisar 3 862 pessoas, está que o risco de um indivíduo sofrer dessas dores é 81% maior quando se ultrapassa o limite da obesidade, ou seja, um IMC maior que 30. E, nesse papo-cabeça, a professora diz que tem mais…
Há um ano o time da Johns Hopkins demonstrou que a cirurgia bariátrica, que promove uma perda expressiva de peso, diminui as crises de uma média de oito para quatro ou menos por mês – efeito mais evidente em indivíduos com menos de 50 anos. “Longe de mim dizer que a enxaqueca severa serve de pretexto para alguém ser operado”, esclarece Barbara Peterlin. “Só posso afirmar aos que já são candidatos à bariátrica que, se eles vivem martirizados por dores de cabeça, esse seria um benefício extra.”
Sim, um abdômen volumoso parece intensificar qualquer suplício. A fisiologista Akiko Okifuji, professora da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, reuniu 215 pacientes com fibromialgia, um terço delas acima do peso.
Ao apertar os implacáveis pontos dolorosos mapeados nessa doença, as que tinham IMC alto relatavam dores mais fortes. “Há algo subjetivo quando alguém descreve a intensidade do incômodo em uma escala de zero a 10”, reflete. “Mas outros estudos apontam na mesma direção.”
Para fechar esse capítulo doloroso, pessoas acima do peso têm maior risco de desenvolver diabete – doença que pode deflagrar dores lancinantes nos nervos. Mas a aflição começa antes, quando o indivíduo apresenta resistência à insulina ou pré-diabete. “Essa condição dispara uma substância chamada interleucina-1, ou IL-1, que é uma potente causadora de inflamações”, explica o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP de Ribeirão Preto, no interior paulista.
O médico compartilha algo curioso que para ele e seus colegas não é novidade: “O ácido acetilsalicílico, princípio ativo de alguns dos analgésicos mais comuns, baixa a glicose na circulação, o que diminui a presença da IL-1 e ameniza a dor”. Por falar em medicamentos, vamos ao outro lado da história.
Quando a dor engorda
“O tratamento de incômodos crônicos engorda”, já avisa Malebranche Carneiro. “Muitas das medicações para combater o quadro provocam uma fissura por itens açucarados”, observa ele, referindo-se a certos antidepressivos, entre outros fármacos. Sim, no arsenal contra os incômodos constantes pode entrar até antidepressivo. “Além disso, alguns analgésicos causam um hipotireoidismo subclínico, reduzindo as taxas de hormônio do crescimento, o que induz ao acúmulo de gordura”, revela.
Abrir mão de medicamentos não seda a situação. “Mas temos o dever de procurar alternativas farmacológicas que evitem esse efeito se a pessoa já está acima do peso”, opina Carneiro. Nem sempre isso é tão simples ou viável. “O certo, embora raro, seria alertar o paciente medicado que ele corre um bom risco de engordar, até para que ajuste seu estilo de vida”, declara o neurologista Carlos Eduardo Altieri.
Outro ponto nevrálgico está na hora de dormir. Todo sofredor sabe: não é fácil pregar os olhos com dor. E, se adormece, o sono não é dos melhores. “Isso faz a leptina, hormônio da saciedade produzido no tecido gorduroso, cair. Já a taxa de grelina, ligada à fome, sobe”, explica o endocrinologista Bruno Halpern, da USP. “Resultado: essas pessoas ingerem, em média, 300 calorias a mais todo dia”, calcula.
O reumatologista Ari Halpern – o sobrenome igual ao do colega endócrino é coincidência – , também da USP e do Einstein, destaca a influência do sedentarismo: “É difícil convencer a paciente com fibromialgia a fazer exercício, algo que até minimizaria a dor”, exemplifica. “E é claro que a inatividade favorece o ganho de peso.”
Mas há quem veja nesse círculo vicioso uma oportunidade de mudanças. “Nessa situação ovo e galinha, que é a da relação dor e obesidade, uma pode ser a motivação para resolver a outra. Mas a receita exige estilo de vida ativo, reeducação alimentar, controle do estresse, dormir bem e paciência até se encontrar a melhor medicação”, resume a endocrinologista Claudia Cozer, do Sírio-Libanês.