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O começo do fim

A Covid-19 não é mais a emergência que já foi, mas a pandemia não acabou. Entenda o momento atual e vislumbre como será nosso futuro frente ao vírus

Por Chloé Pinheiro
21 jun 2023, 13h24
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Momento é de tranquilidade, mas baixar a guarda de vez pode trazer cenas do passado de volta  (Fotos: Klaus Vedfelt - Getty Images / Ilustrações: Laura Luduvig/SAÚDE é Vital)
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Mudando de casa, encontrei minha agenda de 2020. Nos meses de janeiro e fevereiro, muitos rabiscos para priorizar uma nova e urgente demanda, investigar a história de um vírus que se espalhava na China, o Sars-CoV-2. Que na época nem se chamava assim.

Era um estranho.

Desde então, acompanhamos em tempo real, com interesse e medo, a evolução da ciência e todo o estrago que a Covid-19 perpetrou.

Mais de três anos, milhares de reportagens, estudos e a triste contagem de 6,8 milhões de mortes depois, a situação é outra. Agora está cada vez mais difícil encontrar espaço para falar do coronavírus na imprensa.

É o caminho natural das coisas, com a festejada queda nos casos graves e óbitos. Não à toa, no dia 5 de maio a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o fim da emergência sanitária de importância internacional.

A decisão foi tomada com base na avaliação de um comitê consultivo de especialistas. “Uma emergência é quando uma doença sobrecarrega os sistemas de saúde e faltam recursos básicos para controlá-la, e não vivemos mais esse cenário com a Covid”, explica Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

Não há quem discorde dessa afirmação. Graças às vacinas e à imunidade conquistada no contato com a infecção, a maior parte da população teve contato com o Sars-CoV-2 e se encontra bem mais protegida dele. Verdade que essa proteção teve um alto custo, em especial para o Brasil, que acumula 10% das mortes do mundo, embora só 0,5% da população global seja brasileira.

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+ Leia também: Como o Brasil virou o país da cloroquina?

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(Ilustrações: Laura Luduvig/SAÚDE é Vital)

Mas há, no meio de tanta tristeza, conquistas para celebrar e motivos para refletir. “O maior legado da pandemia é o avanço científico”, afirma a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).

Graças a um esforço internacional e parcerias entre governos, empresas e universidades, as vacinas surgiram rápido e tiveram um efeito inegável na curva de casos. E os imunizantes de RNA mensageiro, que estrearam na pandemia, poderão ajudar a prevenir e até tratar outros problemas de saúde.

Tem gente que ainda diz que o vírus teria ficado mais brando independentemente das vacinas, e que a imunidade da infecção é melhor que a promovida pelas doses, mas ambas as opiniões não são amparadas pelas evidências. “Sem as vacinas, o impacto da doença teria sido muito maior”, crava o infectologista Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

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Os imunizantes, aliás, continuam sendo muito importantes nesta nova etapa de convivência com o vírus. “O Brasil ainda é um dos países onde a Covid está entre as cinco principais causas de morte”, alerta Croda.

A emergência se foi, mas a doença ainda é pandêmica: está espalhada pelo mundo, com estatísticas que desafiam as manchetes celebrando o fim.

Na China, por exemplo, estavam previstos 65 milhões de casos por semana no início de junho, em um novo pico causado pela subvariante XBB, derivada da Ômicron, que já circula por aqui. É um lembrete de que o patógeno, ainda que nos pareça familiar, não deve sair da pauta tão cedo. E os próprios números nacionais reforçam essa ideia.

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Clique para ampliar (Fotos: Klaus Vedfelt - Getty Images / Ilustrações: Laura Luduvig/SAÚDE é Vital)

No Brasil, a Covid deixou de ser uma emergência em abril de 2022. Desde então, quase 40 mil pessoas morreram. “E atualmente ela ainda provoca entre 40 e 50 óbitos por dia, o que não é pouco, embora seja bem menos do que as médias de 2021”, observa Naime.

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A título de comparação, em 2023, o coronavírus vitimou 8 mil pessoas. A gripe, no mesmo período, matou menos de 500.

Essa alta circulação dificulta, inclusive, sentenciar o fim da pandemia. “Mas essa é uma situação corriqueira ao longo da história. As pandemias não terminam por completo. O que acontece é que infecções e óbitos chegam a um nível administrável”, comenta o antropólogo Jean Segata, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O futuro do vírus é incerto

Tudo indica que a gente vá conviver com o Sars-CoV-2 para sempre, como tantos outros vírus respiratórios, que na maioria das vezes nem sequer são diferenciados no pronto-socorro.

“Podemos esperar que ele entre em uma órbita estável conosco. Ou seja, que continue causando pequenos surtos em populações mais vulneráveis, como idosos, crianças e pessoas imunossuprimidas. Mas que, no restante da população, se torne um vírus quase assintomático, como ocorre com os outros coronavírus que causam resfriados em humanos”, elucida o virologista Paulo Eduardo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP).

Ainda falta entender que órbita estável é essa… E em que patamar seguirão os casos mais graves. Outra questão ainda sem resposta: qual é a sazonalidade da doença? No caso da gripe, temos isso bem definido: o comum é ter surtos no outono-inverno.

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“Até o momento, não podemos afirmar com segurança em que período do ano é mais esperado um aumento da disseminação da Covid”, diz o pesquisador em saúde pública Marcelo Gomes, coordenador do Boletim Infogripe, da Fiocruz. “E não só a frequência, mas o próprio volume de casos que podemos considerar um estágio basal”, emenda.

Quem vai dizer isso é o tempo. Alguém arrisca um palpite? “Vamos demorar para saber”, responde o epidemiologista Paulo Lotufo, também professor da USP.

Fato é que, enquanto isso não acontece, devemos ficar em vigilância. Isso também por causa de outro ponto que suscita debates na comunidade científica, a evolução das variantes.

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Vírus, como já estamos cansados de saber, são feitos basicamente de material genético, e sobrevivem replicando seus genes com a ajuda das células do hospedeiro. A cada cópia, há a chance de um erro.

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Isso acontece toda hora, numa escala de grandeza que não dá nem para calcular. Mas, de vez em quando, uma mutação oferece alguma vantagem ao vírus e acaba se tornando predominante.

Depois do Sars-CoV-2 original, vieram variantes mais agressivas, como a Delta e a Gama, que abarrotaram UTIs.

Entre 2021 e 2022, surgiu a Ômicron, que a princípio pareceu mais branda, mas também veio em um momento em que estávamos bem vacinados.

E depois? “Não está escrito em pedra que todos os vírus vão ficando mais brandos conforme evoluem”, diz Gomes.

O próprio influenza é um exemplo. Hoje convivemos em relativa paz com ele — também devido à vacina—, mas vira e mexe nascem epidemias ou até pandemias quando surge uma mutante agressiva. Como ocorreu em 2009 com o H1N1.

Uma das maneiras de evitar que o coronavírus siga a mesma rota é com vacinas ainda melhores. Hoje elas protegem de casos graves e mortes, mas indivíduos vacinados contraem Covid com frequência. Pouco perigo para eles, mas cada infecção aumenta o risco de brotar uma variante com comportamento imprevisível.

E essa é uma questão que preocupa os especialistas em relação ao fim da emergência. Os recursos que jorraram para a produção de vacinas e medicamentos tendem a ficar mais escassos.

E não só: a própria adesão da população às doses de reforço caiu junto com a percepção de risco. É um engano que pode piorar essa situação indefinida. “Se a retirada da situação de emergência pela OMS for interpretada por governos e pessoas como um sinal para parar vacinação, diagnóstico e tratamento das pessoas com Covid, o tempo para nos livrar da pandemia será bem maior”, acredita Brandão.

E a vida, como fica?

A maior preocupação agora é com o grupo mais suscetível às complicações da doença. Hoje, o principal cuidado recomendado pelos médicos é manter a carteirinha de vacinação em dia. O esquema básico é de três doses, mais um reforço com a bivalente (ou dois, para quem tomou a quarta dose antes de a novidade chegar).

Embora não barre 100% das infecções, a fórmula tem efeito significativo na prevenção de internações. Já o uso de máscaras de maneira coletiva não se justifica mais, mas em certas situações é bem-vindo como proteção extra — quando alguém em maior risco for a uma aglomeração ou a centros de saúde, por exemplo.

O acessório também pode ser adotado quando o sujeito apresentar sintomas respiratórios, independentemente do vírus que estiver por trás das queixas.

A questão do uso de máscaras quando estamos com dor de garganta ou nariz escorrendo suscita a discussão sobre mudanças de comportamento no pós-emergência.

Esse hábito poderia ser incorporado, a exemplo do que já faz a população de países asiáticos, para proteger outras pessoas no ônibus, no metrô, no escritório… “Estamos perdendo a oportunidade de trabalhar medidas simples como essa, que evitariam milhares de mortes por doenças respiratórias todos os anos”, avalia Gomes.

+ Leia também: Qual é a diferença entre epidemia, pandemia e endemia?

Aqui entramos em outra seara: a das lições que não aprendemos. “O retorno à normalidade parece que apagou a existência do coronavírus, enquanto eventos históricos como esse deveriam produzir mudanças estruturais e cotidianas na sociedade”, analisa Segata.

O antropólogo pondera, contudo, que essa sensação de que não aprendemos nada pode acontecer porque ainda estamos numa fase de transição e a pandemia é um evento muito próximo. Ou seja, o tempo, de novo, vai dizer se nosso comportamento será de fato transformado.

Para que isso aconteça, é necessário tomar medidas institucionais. “Não dá para responsabilizar apenas os indivíduos. Eles precisam ser orientados. Podemos aproveitar para criar uma noção de cuidado coletivo, não de pessoas destacáveis do resto do mundo”, reflete Segata.

Tal debate também se aplica à desigualdade entre as nações. “Ainda não conseguimos atingir uma distribuição igualitária de vacinas e tratamentos entre os países, e avançamos pouco na discussão sobre quebras de patentes e compartilhamento de tecnologias em situações delicadas como essa”, diz Croda.

O medo é que exploda uma nova pandemia antes mesmo que a gente se livre de verdade dessa. E essa é uma preocupação bem plausível, haja vista o avançar da gripe aviária, provocada pelo vírus H5N1, que, pela primeira vez, se espalhou entre animais para a América Latina, incluindo o Brasil.

Não à toa, há quem chame o período histórico atual de Pandemiceno, tamanha nossa suscetibilidade a vírus e bactérias. “Vivemos uma situação de risco anunciado para o surgimento de novos patógenos: degradação ambiental, mudanças climáticas, consumo desenfreado…”, elenca Segata, que vê, nesse sentido, uma espécie de emergência.

“Não podemos continuar vivendo como vivemos, comendo o que comemos, e pensando que o único ponto crítico é a preparação dos sistemas de saúde, e não o que provoca a sobrecarga deles”, completa.

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Quando a próxima ameaça viral aparecer (e ela vai aparecer), teremos caminhos de colaboração internacional estruturados e mais justos? E os sistemas de vigilância genômica, que monitoram as mudanças genéticas do Sars-CoV-2, estarão ainda sendo mantidos pelos órgãos públicos, prontos para decifrar outros patógenos?

Mais importante ainda: os governos conseguirão se comunicar bem com a população e seguir a orientação da ciência? “Como vimos com a Covid, o simples discurso de governantes pode determinar a morte de milhares de pessoas”, pontua Naime.

Na pandemia, também ficou evidente que a confiança no governo e nas instituições faz diferença na adesão às medidas preventivas. Mas confiança é algo tão fácil de perder quanto difícil de conquistar de volta. E seguir a ciência é bem mais complicado do que tomar decisões baseadas em clamor popular.

“É preciso comunicar o risco em saúde e as incertezas do processo científico com transparência, sendo capazes de falar sobre o que não sabemos e explicando que, durante o processo científico, é normal mudar de ideia”, diz Natalia.

Problemas represados

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(Fotos: Klaus Vedfelt - Getty Images / Ilustrações: Laura Luduvig/SAÚDE é Vital)

A Covid ainda está na cabeça de muita gente. Segundo uma pesquisa realizada pela Ipsos, 62% dos brasileiros a consideram o maior problema de saúde pública enfrentado pelo país. A média global é 47%, e o levantamento ouviu 23 mil pessoas de 34 nações.

Foi mesmo difícil pensar em outra coisa nos últimos anos, mas há desafios extras que exigem atenção coletiva. A lista é extensa. Inclui as pessoas com sequelas ou sintomas da Covid longa. “E muitas delas têm sido rejeitadas pelos sistemas de saúde”, critica Segata.

Inclui os mais de 40 mil órfãos de mãe que o coronavírus deixou (fora os de pai) e os milhões de crianças e adolescentes com o aprendizado prejudicado pelo longo e confuso fechamento das escolas. Inclui, ainda, os milhares de pacientes que não foram operados e os diagnósticos que não foram feitos.

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Por fim, a lista inclui as milhares de crianças desprotegidas por causa das baixíssimas coberturas vacinais. Doenças infecciosas já esquecidas podem voltar a qualquer momento ao noticiário, com toda a carga negativa que elas carregam.

Para ter ideia: com a decisão da OMS, só existe uma emergência global de saúde pública em vigor, a poliomielite, que causou milhões de casos de paralisia infantil mundo afora no século 20. Mesmo sendo evitável com a vacina, ela ainda não foi totalmente erradicada. Então a bandeira de alerta segue hasteada.

A história nos mostra que tecnologia não é o suficiente para manter nossa vida e agenda livres de perturbações. Que o diga a Covid!

As variantes em circulação

 

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(Ilustrações: Laura Luduvig/SAÚDE é Vital)
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