Desde o início da epidemia de aids (síndrome da imunodeficiência adquirida), a compreensão sobre como acontece a transmissão do HIV e a influência do tratamento nisso avançou consideravelmente. Um dos marcos desse contexto foi o estabelecimento do conceito Indetectável = Intransmissível (I = I), ou Undetectable = Untransmittable, no inglês.
Esse conceito é claro: pessoas vivendo com HIV em tratamento e com carga viral indetectável há pelo menos seis meses não transmitem o vírus através de relações sexuais. Diferentes estudos comprovam essa alegação, que é reiterada por instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mas isso é, de fato, compreendido pela população? Um estudo conduzido por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) investigou o conhecimento dos brasileiros sobre o HIV e o conceito de I = I.
A análise apontou que 31,9% dos 401 participantes acertaram completamente o significado dessa premissa. Por outro lado, 30,7% erraram de longe a definição. Detalhe: quanto mais a pessoa sabia sobre o vírus em si, maior a chance de compreender e aceitar a ideia do I = I.
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Aqueles que vivem com HIV também apresentaram maior conhecimento do que indivíduos que se testaram recentemente. O entendimento sobre o vírus também foi maior entre minorias sexuais e de gênero. Mas menor entre os jovens e brasileiros com renda baixa e com menor escolaridade.
Os achados foram publicados na Revista de Saúde Pública, periódico científico editado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Diante disso, VEJA SAÚDE entrou fundo nessa história para ajudar você a entender do que se trata esse conceito e por que ele é tão essencial como estratégia de saúde pública. Confira:
O que é carga viral do HIV?
Vamos começar pelo primeiro “I”, de indetectável. Ele se refere especificamente ao nível de carga viral.
“E carga viral é o nome do exame que quantifica as partículas de vírus no sangue da pessoa que vive com HIV. O seu resultado é dado em cópias de vírus por mL de sangue”, esclarece o infectologista Rico Vasconcelos, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Ele pode ser usado tanto para fazer diagnóstico de infecção pelo HIV, mas principalmente para o controle de tratamento”, completa.
Como todo vírus, o HIV invade células humanas e usa o maquinário delas para se replicar. As novas cópias, por sua vez, caem na corrente sanguínea. Ou seja, se a carga viral está alta, há muitas cópias do HIV circulando, o que compromete a saúde com o tempo.
O tratamento antirretroviral
O HIV é um retrovírus de uma subfamília chamada Lentiviridae. Como a maioria de seus primos, ele tem um longo período de incubação (os sintomas associados demoram a aparecer), infecta células sanguíneas e compromete o sistema imunológico, aquele responsável pelas defesas do nosso corpo.
O HIV mira especificamente os linfócitos T-CD4+, que comandam nossas defesas contra outras infecções e doenças. Daí porque a aids favorece infecções e o sarcoma de Kaposi, um tipo de câncer ligado a quedas na imunidade.
Aqui, entra o papel essencial dos medicamentos antirretrovirais. Ao bloquear a replicação do vírus, eles reduzem a carga viral. Em determinado momento, a quantidade de vírus no sangue atinge um nível tão baixo que deixa de ser detectada nos exames laboratoriais.
Só que uma das particularidades do vírus é, mesmo sob o ataque dos tratamentos atuais, conseguir se esconder dentro de certas células. Ele desaparece da circulação, porém está à espreita. Daí porque se fala em carga viral indetectável, não em cura.
“O objetivo do tratamento é deixar a carga viral indetectável num período médio de seis meses. Nesse limite, o paciente tem segurança de que a terapia está indo bem”, afirma o médico infectologista Álvaro Furtado, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e diretor da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI).
O uso contínuo da medicação reduz os riscos de complicações para a saúde. “O tratamento antirretroviral tem como objetivo impedir que o vírus se multiplique. Ao não se multiplicar, ainda que esteja presente em pequeníssimas quantidades no corpo, esse vírus não faz mal para a saúde da pessoa e não existe progressão da doença para a aids”, acrescenta Vasconcelos.
Ainda assim, um receio do passado – e que persiste na cabeça de algumas pessoas – é: mesmo escondido em umas poucas células (ou indetectável) e sem ameaçar a saúde do paciente, o HIV seria capaz de ser transmitido para outra pessoa pelo sexo?
Então vamos para o segundo “I”, de intransmissível.
I = I
O consenso científico de que carga vira indetectável é sinônimo de que a pessoa não transmite o vírus não é novo. Desde 2017, a expressão Indetectável = Intransmissível é adotada mundialmente por cientistas e instituições de referência.
E essa conclusão tem como base quatro amplos estudos sobre a transmissão sexual do HIV chamados HPTN-052, Opposites Attract, PARTNER e PARTNER 2.
As pesquisas, realizadas em vários países, reuniram dados de milhares de casais sorodiferentes, que são relacionamentos em que apenas uma das parcerias vive com o vírus.
As análises foram publicados em alguns dos mais respeitados periódicos científicos do mundo, como The Lancet, New England Journal of Medicine (NEJM) e Journal of the American Medical Association (JAMA).
“Foram estudos robustos, que avaliaram populações de vários países, incluindo casais hetero e homossexuais. E eles indicam o risco zero de transmissão do vírus de um membro do casal para o outro quando a carga está indetectável”, afirma Furtado.
Mais recentemente, uma revisão sistemática envolvendo 7 700 casais sorodiferentes de 25 países confirmou que o risco de transmissão sexual quando a carga viral é inferior a 200 cópias/mL é zero. Os achados também foram publicados no The Lancet.
Outra novidade é que a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçou o seu posicionamento neste ano. O documento reitera e valida o conceito I = I.
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Com o estabelecimento do consenso I = I , o tratamento transformou também o panorama da prevenção. Ora, além de evitar danos à saúde do indivíduo com HIV, a terapia antirretroviral passou a ser reconhecida como uma estratégia preventiva, capaz de interromper a cadeia de transmissão.
Preconceito
Se a ciência avançou a passos largos, ainda existe um longo caminho a percorrer no combate ao estigma que afeta significativamente o enfrentamento da epidemia.
Um panorama do problema foi apresentado em um amplo estudo publicado em 2019, com a participação de diversas instituições e organizações, incluindo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids).
A pesquisa, que contou com a participação de 1 784 brasileiros em sete capitais, revela que 64,1% experimentaram alguma forma de discriminação pelo fato de viverem com HIV.
A mais relatada pelos participantes foi saber que outras pessoas estavam fazendo comentários discriminatórios ou especulativos sobre a sua condição.
Mesmo entre membros da família, essa forma de invasão de privacidade e assédio foi bastante apontada. Mais de 40% dos ouvidos afirmaram saber de falas depreciativas de familiares.
E o problema se aprofunda. Os dados mostram que diversos participantes já sofreram assédio verbal (25,3%), agressões físicas (6%) e perda de fonte de renda ou emprego por conta da vivência com o vírus (19,6%).
“As pessoas têm equivocadamente na cabeça a ideia de que vive com HIV aquela pessoa que fez coisa errada. Ela ‘pegou HIV porque transava com todo mundo, porque era promíscuo, porque era gay ou usava droga'”, destaca Vasconcelos. “Isso não é verdade. Sabemos que pode qualquer pessoa que esteja viva, que tenha uma vida sexual ativa, pode pegar o vírus”, completa.
Existe também um senso comum de que pessoas com HIV são um perigo para a sociedade, porque podem transmitir o vírus. “Quando a OMS fala que, com tratamento, não há risco de transmissão, temos uma potente ferramenta para combate a essas informações equivocadas”, arremata Vasconcelos.
Se ainda existem dúvidas, vale consultar sites oficiais do Ministério da Saúde e de instituições como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
“Esse entendimento empodera as pessoas com HIV a ter uma vida sexual tranquila, sem risco de transmissão, contanto que elas tomem o remédio e fiquem indetectáveis”, acrescenta Furtado.
Novas diretrizes terapêuticas
No Brasil, os antirretrovirais são ofertados gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 1996. São pelo menos 22 medicamentos distribuídos em mais de 30 apresentações farmacêuticas diferentes.
Neste ano, o Ministério da Saúde anunciou a disponibilização de um novo fármaco, que combina em um único comprimido dois compostos essenciais ao tratamento. De acordo com a pasta, o esquema terapêutico, que facilita a adesão, será adotado gradualmente.
Em outubro, o Ministério da Saúde publicou um novo protocolo clínico e diretrizes para o tratamento do HIV. O conteúdo incorpora medicamentos e descreve condutas para o aprimoramento do cuidado dos pacientes.
A publicação atualiza o documento revisado pela última vez em 2017. A elaboração contou com a participação de um comitê de especialistas composto por representantes da comunidade científica e da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Assim como fez a OMS, o ministério reitera que o esclarecimento e a divulgação do conceito Indetectável = Intransmissível (I = I) é parte
essencial do cuidado. “O conceito combate estigma e preconceito, afirma os direitos sexuais e reprodutivos e melhora a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV”, diz a diretriz.
O protocolo estabelece que a terapia antirretroviral deve ser iniciada no mesmo dia ou em até sete dias após o diagnóstico. A detecção da infecção pode ser feita por meio da testes rápidos ou de exames de laboratório.
Unidades básicas de saúde da rede pública e Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) ofertam os serviços gratuitamente (consulte a lista aqui).
O documento do Ministério da Saúde reforça ainda que os profissionais de saúde devem estar preparados para identificar barreiras estruturais e sociais que possam impactar na adesão ao tratamento e no cuidado contínuo, entre elas: estigma social, preconceito, racismo, insegurança alimentar, entre outras.