No linguajar médico, silenciosa é toda doença que, em um primeiro momento, não manifesta sintomas. Não há dor. Não há febre. Não há queixas.
Um bom exemplo é o glaucoma: em oito entre dez casos, ele é totalmente assintomático quando começa a se instalar.
Não tem coceira nem vermelhidão. A vista não fica embaçada, não há sensibilidade à luz, os olhos não estão secos. Mas há uma espécie de crime sendo cometido nos globos oculares.
“Já virou chavão entre os oftalmologistas comparar o glaucoma a um ladrão”, conta Marcelo Hatanaka, chefe do Setor de Glaucoma do Hospital das Clínicas de São Paulo.
“Num dia, ele pula o muro da sua casa e rouba uma flor do jardim. No outro, invade a janela que você esqueceu aberta e leva um objeto de valor. Quando o dono percebe, já pode ser tarde”, adverte.
A condição, estima-se, afeta entre 1 milhão e 2,5 milhões de brasileiros e está no panteão das principais causas de deficiência visual no mundo, ao lado de catarata, retinopatia diabética e degeneração macular.
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Cada uma delas atinge uma região do olho: o glaucoma ataca o nervo óptico, que conduz as informações captadas pela vista até o cérebro; a catarata torna o cristalino, uma lente natural, opaco; e a retinopatia e a degeneração macular comprometem a retina, tecido no fundo do olho crucial para a leitura das imagens.
Outra coisa que diferencia essas doenças é seu potencial de reversibilidade.
“A cegueira causada pela catarata é reversível. Basta operar a vista e tudo volta ao normal. Isso não ocorre com o glaucoma”, avisa Tiago Prata, professor de oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Em outras palavras, sem diagnóstico e tratamento adequado, a visão pode sumir gradualmente — e sem chance de retorno.
É por essas e outras que a Sociedade Brasileira de Glaucoma (SBG) está fazendo uma campanha massiva para alertar a população. E o Maio Verde marca o mês de conscientização sobre o problema e suas causas.
O glaucoma surge por um “defeito de fábrica”: em geral, a pessoa nasce com uma predisposição genética para a doença, que se manifesta em alguma fase da vida.
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O grande fator de risco nessa história, ressalta Roberto Galvão Filho, presidente da SBG, é o aumento da pressão intraocular (PIO).
Sim, os olhos podem ficar sob pressão. O oftalmologista explica que a PIO média gira em torno de 16 mmHg (milímetros de mercúrio), podendo variar entre 13 e 21 mmHg.
Mas você sabe como anda a sua PIO? Provavelmente, não, certo? Os especialistas brincam que quase todo mundo conhece sua pressão arterial (e ótimo se ela estiver até 13 por 8).
Só que quase ninguém tem ideia da sua pressão intraocular. Ok, então basta saber esse valor para detectar o perigo? Não é tão simples.
“Há pessoas com 13 mmHg que já têm glaucoma e outras com 28mmHg que não têm”, relata Galvão Filho. Daí a necessidade de um
check-up oftalmológico periódico, capaz de averiguar a PIO e as profundezas do globo ocular.
Uma pesquisa do Ibope com 2,7 mil brasileiros de sete estados constatou que 41% deles não fazem a menor ideia do que seja glaucoma.
Para facilitar o entendimento de seus pacientes, Marcelo Hatanaka costuma comparar o nervo óptico a um cabo USB. Se este conecta uma câmera ao computador, aquele liga os olhos ao cérebro.
“Quando a pressão intraocular aumenta muito, danifica o nervo e compromete a qualidade da visão”, explica o oftalmologista.
A pressão intraocular vai às alturas quando o líquido que o olho produz para lubrificá-lo, o humor aquoso, não é drenado como deveria.
Isso pode acontecer por duas razões: por obstrução da íris, a parte colorida do globo ocular, ou por um problema no sistema de drenagem do olho.
No primeiro caso, o glaucoma é rotulado como de ângulo fechado. No segundo, de ângulo aberto.
Complicado? Remo Susanna Júnior, professor de oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), tem outra analogia a fazer: “O glaucoma de ângulo fechado seria como uma pia em que o ralo está entupido, mas o encanamento está bom. Já no de ângulo aberto, o ralo está desobstruído, mas o encanamento está danificado”.
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Dos mais de 25 tipos de glaucoma, o de ângulo aberto é o mais comum: 80% dos pacientes padecem dele. Em geral, evolui de maneira lenta, progressiva e assintomática.
As pessoas não notam nada até que começam a perder a visão periférica e a esbarrar nos móveis da casa ou a bater a cabeça na quina dos armários.
“O paciente só apresenta sintomas, como a redução central ou periférica do campo visual, nas fases mais avançadas da doença. Quando isso ocorre, há desde perda de equilíbrio até dificuldade de leitura”, esmiúça Susanna Júnior.
O glaucoma de ângulo fechado é o segundo mais frequente. Sua evolução é rápida, abrupta e sintomática. Inclui, entre outros incômodos, dor de cabeça do lado do olho afetado, pupila dilatada e visão turva.
“Embora seja menos prevalente, esse tipo causa proporcionalmente mais cegueira e, portanto, é mais grave. No entanto, ao contrário do glaucoma de ângulo aberto, o de ângulo fechado pode ser curado se diagnosticado rápido”, afirma o professor da USP.
Fora o aumento da pressão intraocular, existem outros fatores por trás do glaucoma. São eles: história familiar, idade avançada, raça negra, miopia elevada, uso indiscriminado de medicamentos como corticoides e traumas oculares.
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Sim, há um peso genético. “Se o indivíduo tem parentes de primeiro grau com glaucoma, tem o dobro de chance de desenvolver a doença, se comparado a alguém sem casos na família”, calcula Galvão Filho.
Nessa linha, estudos sugerem que a população negra tende a apresentar pressão intraocular mais alta e nervos ópticos mais frágeis que os caucasianos.
E, se os negros têm maior propensão ao glaucoma de ângulo aberto, os asiáticos são mais vulneráveis ao de ângulo fechado.
Mas o presidente da SBG tem uma ponderação que não deve ser perdida de vista: “No Brasil, por causa da intensa miscigenação racial, somos todos candidatos em potencial a ter glaucoma”.
Algumas questões, como a genética e o avanço da idade, são incontornáveis. Porém, é possível reduzir riscos tomando cuidado com o uso crônico de alguns remédios — e não só colírios.
O maior receio envolve os corticoides, utilizados para debelar processos alérgicos e inflamatórios e controlar doenças como a asma.
É que a utilização desenfreada pode levar, nas palavras de Tiago Prata, a “aumentos catastróficos da pressão intraocular” e a danos severos no nervo óptico. Isso se aplica a qualquer medicação à base de cortisona: pomada, comprimido, injeção, colírio…
“Em pessoas mais suscetíveis, o uso de corticoides, ainda que em pequenas doses, pode causar uma lesão na região que drena o líquido dentro do olho e provocar o aumento da pressão ocular”, descreve Galvão Filho.
“Se esse aumento for muito intenso, pode provocar o glaucoma rapidamente. Mas, ao suspender o corticoide, o efeito negativo acaba”, completa o presidente da SBG.
Não é todo mundo, porém, que é tão sensível assim à cortisona — seria algo em torno de 25% da população, sendo que 5% são hipersensíveis ao princípio ativo.
Só que não dá para vacilar. Há casos de pacientes surpreendidos com a pressão ocular na casa dos 50 mmHg (lembrando que o limite ideal é 21). “Aí as sequelas são irreversíveis”, alerta Prata.
Atenção, pais e mães: se seu filho tem sensibilidade à luz, lacrimejamento excessivo e globo ocular aumentado, pode ter um tipo raro de glaucoma, o congênito. Trata-se de um defeito na formação do sistema de drenagem de apenas um ou de ambos os olhos. Sem ter por onde escoar, o líquido se acumula, pressionando o nervo óptico. “Por isso os cuidados com a saúde ocular têm de começar cedo”, diz o oftalmo Tiago Prata. “Logo ao nascer, o bebê já deve ser avaliado. E novos testes precisam ser realizados por volta dos 3 e dos 6 anos”, continua. O tratamento do glaucoma congênito é quase sempre cirúrgico — quanto antes feito, melhor.
Os oftalmologistas são unânimes ao afirmar: “Quanto mais precoce o diagnóstico, maiores as chances de evitar a cegueira”.
Mas, a partir de que idade o indivíduo deve começar a investigar se é candidato ou não a sofrer de glaucoma?
Em primeiro lugar, cabe lembrar que o check-up no oftalmo é bem-vindo de tempos em tempos — e desde a infância.
Pensando no risco de glaucoma em si, a investigação pode começar por volta dos 45 anos. Se o paciente for da raça negra, tiver história familiar da doença ou apresentar miopia elevada, o rastreamento começa aos 40.
Nas consultas, o médico irá medir a pressão intraocular e inspecionar as estruturas do olho.
Enquanto a pressão arterial, cuja elevação contribui para infarto e AVC, pode ser medida em casa ou na farmácia, a intraocular só é avaliada em consultório. Então tem que marcar uma visita ao oftalmologista mesmo.
E não basta aferir a PIO para chegar a um diagnóstico. “A pressão do olho varia ao longo do dia. Pode ser que, no exato momento em que a sua seja aferida, ela esteja boa”, comenta Hatanaka.
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A história ganha contornos mais complexos se considerarmos que não há um valor-padrão seguro para a PIO.
Como foi dito, há pacientes que, apesar de ter uma pressão relativamente normal, sofrem de glaucoma, e outros que, embora sua pressão seja alta, não têm a doença.
O que fazer? Os médicos recomendam mais dois exames: o de fundo de olho e o de campo visual.
O primeiro analisa o disco óptico, o começo do nervo, na parte interna do olho — em alguns casos, para realizá-lo, é necessário dilatar a pupila.
O segundo exame ajuda o médico a identificar eventuais perdas de visão periférica causadas pelo glaucoma. Consiste em apertar um botão ao enxergar pontos luminosos em diferentes posições.
“Se houver alteração no nervo óptico, o exame de fundo de olho detecta. Da mesma forma, se o nervo estiver comprometendo a visão, o exame de campo visual avisa”, resume Hatanaka.
Quanto ao intervalo ideal entre as consultas, tampouco há uma regra geral. Depende de algumas variáveis, como fatores de risco, estágio da doença e resposta ao tratamento. O essencial é não deixar de ir ao especialista.
Não à toa, a SBG, em parceria com o Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO), lança este mês a campanha “24h pelo Glaucoma”, que engloba, entre outras ações voluntárias, a aferição da pressão intraocular e outros exames em diversas cidades do Brasil, além da realização de um programa on-line, transmitido pelo YouTube e por outras redes sociais, para esclarecer as pessoas sobre o tamanho do perigo.
A maioria dos casos de glaucoma não tem cura, mas tem controle. O tratamento abrange colírios específicos, laser e cirurgia. E vai depender do tipo da doença, do estágio em que foi diagnosticada e do estado do nervo óptico.
“Em geral, iniciamos com colírio e laser e guardamos a cirurgia para os casos mais resistentes ou avançados”, diz a médica Maria Vitória Moura Brasil, do Instituto Brasileiro de Oftalmologia.
Os colírios têm dois mecanismos de ação: diminuem a produção do humor aquoso, o líquido que circula dentro do olho, ou aumentam sua drenagem. Seja qual for, ajudam a controlar a elevação da pressão intraocular ligada à enfermidade.
O tratamento é algo bem individualizado. Enquanto alguns pacientes pingam apenas um colírio por dia, outros têm de recorrer a dois ou três.
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São muitas as recomendações dadas pelos oftalmologistas no ritual de uso dos medicamentos: lavar bem as mãos antes da aplicação do colírio; puxar suavemente a pálpebra inferior antes de pingar o produto; permanecer com o olho fechado por um minuto até a gota penetrar no globo ocular; só pingar a segunda gota se tiver certeza de ter errado a primeira; e, se usar mais de um colírio no mesmo horário, aguardar no mínimo dez minutos entre a aplicação deles.
“O colírio é um remédio. E, como tal, pode ter efeitos colaterais”, sublinha Maria Vitória. Caso haja dor ou coceira após a utilização, é prudente informar ao médico. Em alguns casos, será preciso ajustar o tratamento.
Os experts orientam ainda que, caso o paciente tenha de botar mais de um colírio por dia, vale a pena identificar os frascos com etiquetas ou fitas coloridas.
Se necessário, pode-se montar uma tabela de uso e a deixar em lugar visível.
Outra dica: adapte os horários de aplicação às atividades, como acordar, dormir ou almoçar. Por último, nunca deixe de usar e jamais troque o medicamento sem falar com o médico.
Infelizmente, isso acontece por aí, para o azar dos olhos dos pacientes. O tema é tão sensível que a SBG vai lançar outra campanha junto à população. O mote é: “Uso correto de colírios pode salvar sua visão: saiba os porquês”.
“Glaucoma é igual a diabetes e hipertensão. É uma doença crônica e seu tratamento pode durar a vida toda. Por isso, não dá para abandonar ou interromper o tratamento achando que você está curado”, justifica Hatanaka.
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Outro assunto que pode ficar nebuloso é a utilização de lentes de contato. O problema não está nelas, mas nas formas equivocadas com que são usadas.
Entre os erros mais comuns (e perigosos), Remo Susanna Júnior destaca: dormir com as lentes e não higienizá-las com produtos adequados.
O presidente do CBO, Ricardo Paletta Guedes, acrescenta outro: não trocar o acessório no prazo correto, ignorando as recomendações da embalagem ou da bula.
“As lentes não deixam de ser um corpo estranho no olho. Sem o devido cuidado, podem causar infecção e até mesmo cegueira”, ressalta.
Alívio à vista
Além dos colírios, o tratamento pode incluir sessões de laser. Elas são consideradas um jeito rápido, indolor e com poucos efeitos colaterais de estancar a encrenca.
Indicado para pacientes com glaucoma de ângulo aberto, o laser tem por objetivo facilitar a drenagem do líquido produzido pelo olho sem causar danos ao tecido do nervo óptico.
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A principal técnica adotada nos consultórios hoje é a trabeculoplastia seletiva.
Já a cirurgia, indicada a casos mais graves, visa criar uma espécie de “ralo” dentro do olho para escoamento do humor aquoso.
Os métodos mais utilizados são a trabeculectomia, que consiste em um pequeno corte na parte branca do globo ocular, e o implante de tubo de drenagem.
Nesse departamento, novidades estão chegando ao Brasil. Uma delas é o implante XEN45, do tamanho de um cílio. Ele é instalado por meio de uma pequena cirurgia naqueles pacientes que não tiveram sucesso com os tratamentos convencionais.
Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o controle do glaucoma de ângulo aberto refratário, já foi feito em pelo menos dois estados, Bahia e Paraná.
“É um procedimento minimamente invasivo e mais seguro que as cirurgias tradicionais”, afirma o oftalmologista Ike Ahmed, da Universidade de Toronto, no Canadá, um dos pioneiros na técnica.
Segundo a AbbVie, empresa responsável por trazer o implante ao Brasil, a instalação dura cerca de 30 minutos, tem cobertura dos planos de saúde e não necessita de hospitalização — só não está disponível ainda no SUS.
O que todo especialista em glaucoma enfatiza é que, se a doença for flagrada e tratada cedo, o risco de perda da autonomia e da qualidade de vida é baixo.
Se o problema for diagnosticado num estágio avançado, porém, será inevitável tomar alguns cuidados extras na rotina, como descer e subir escadas e atravessar a rua.
Dirigir, então, pode se tornar inviável: por causa da perda de campo visual, a condução de um automóvel vira um perigo para si e os outros.
“O tratamento não reverte a perda da visão. Apenas paralisa a doença no ponto em que se encontra. Por isso insistimos tanto no diagnóstico precoce”, reforça Guedes. Ninguém, nem os olhos, merece viver sob tanta pressão.
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Retinopatia na mira
Não é só a pressão ocular nas alturas que pode levar à cegueira. O nível elevado de glicose também.
A diferença é que o glaucoma afeta o nervo óptico e a retinopatia diabética, a retina.
“Um dos perigos é que ela é assintomática. O ideal é que pessoas com diabetes não esperem o aparecimento dos sintomas, como distorções na visão e perda de acuidade, para procurar o médico”, diz Fernando Malerbi, coordenador do Departamento de Saúde Ocular da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD).
A preocupação com o assunto fez a Coalizão Vozes do Advocacy lançar uma campanha sobre essa complicação que atingiria quase 4 milhões de brasileiros.
Por isso, quem tem diabetes é encorajado a fazer exames oftalmológicos regularmente. O tratamento da retinopatia é baseado no tripé colírios, laser e cirurgia.