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Entrevista: “Se pararmos de tomar vacinas hoje, será um desastre”

Em novo livro, imunologista da USP explica em linguagem acessível qual é a importância das vacinas e como elas atuam no corpo

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 21 mar 2023, 09h34 - Publicado em 20 mar 2023, 19h00
foto de mão aplicando vacina
Falamos muito em eficácia e importância das vacinas, mas pouco sobre como elas funcionam no corpo, alerta Cabral (Mufid Majnun / Unsplash/SAÚDE é Vital)
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O imunologista Gustavo Cabral, de 41 anos, hoje é doutor e pesquisador no Instituto de Ciências Biomédicas da USP, onde lidera o desenvolvimento de vacinas. Isso depois de ter passado um tempo na Universidade de Oxford na Inglaterra, e no Hospital Universitário de Berna, na Suíça. 

Mas sua vida começou longe da elite acadêmica, no povoado de Creguenhem, parte do município de Tucano, no sertão da Bahia. Agora, careca de saber porque os imunizantes são importantes, Cabral se preocupa com a quantidade de pessoas que não foram informadas sobre isso. Ou melhor, foram desinformadas. 

Ora, nos anos em que passou no exterior, ele brincava com os amigos que o Brasil não era o país do futebol, mas das vacinas. O jogo virou e muito: a cobertura de todas as vacinas infantis está abaixo da meta e adesão às doses pediátricas da Covid-19 engatinha. 

Essa situação alarmante foi mostrada na reportagem de capa da edição de março (clique aqui para ler).

“Foi muito estranho haver essa mudança de comportamento”, comenta. É difícil desmentir todos os boatos sobre o assunto, mas também é verdade que eles nascem da falta de informações esclarecedoras e letramento em saúde para a população. 

“Deixamos todas as campanhas informativas de lado nos últimos anos e abrimos espaço para o movimento negacionista, uma erva daninha que cresceu. Por outro lado, a linguagem médica e científica às vezes ‘oficial’ é seletiva demais, difícil de entender”, lamenta. 

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Pensando nisso, Cabral mantém um perfil no Instagram para tirar dúvidas e lançou recentemente o livro Sistema Imunológico e Vacinas (Editora Almedina), obra da série Mynews Explica. “Escrevo como se estivesse conversando com meu eu de 17 anos”, brinca. 

VEJA Saúde bateu um papo descontraído com o imunologista sobre alguns mitos envolvendo as vacinas e a situação atual das coberturas. Confira! 

VEJA SAÚDE: Qual é o ponto principal do seu livro? 

Gustavo Cabral: Levar para a sociedade informações que poderiam contribuir para reverter nosso cenário atual de queda nas coberturas. Chegamos ao ponto de nenhuma vacina infantil atingir sua meta, então pensei que era necessário falar de vacina, mas não somente da maneira como fizemos com a Covid-19

Nesse período, falamos muito em eficácia, o que é importante, mas nos aprofundamos pouco no sistema imunológico e na função das vacinas no nosso corpo, e é nesse ponto que as pessoas têm mais dúvidas hoje. 

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Então a ideia foi escrever de forma lúdica e esclarecer mitos em relação ao fortalecimento da imunidade, a proteção oferecida pelo imunizante, tecnologias de vacinas, entre outros. 

Por que é necessário falar sobre isso agora? 

É até necessário e saudável que a população faça perguntas sobre o assunto, o problema é que muitas vezes não as respondemos adequadamente. A gente tinha um programa que orientava a sociedade, campanhas que saíam em todos os canais de comunicação, vacinação nas escolas, e fomos perdendo tudo isso nos últimos anos.

E também não estávamos preparados para essa máquina de notícias falsas, de forma alguma. Não sabíamos a força que tinha essa organização criminosa e o mercado que lucra com a desinformação. 

Sempre fomos muito bons em vacinar, era uma questão cultural e social, então até desdenhávamos do potencial do negacionismo por aqui. Foi muito estranho haver essa mudança de comportamento. 

Qual é a importância das vacinas? 

A vacina não te protege, prepara seu corpo para que ele mesmo te proteja. Ela provoca o sistema imunológico ao fazer com que ele pense que está em contato com um inimigo, por meio de tecnologias diferentes [uma versão inativada do vírus, uma cópia de um trecho de seu código genético, uma proteína artificial].

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A vacina desperta vários tipos de imunidade: os famosos anticorpos, a imunidade celular, além de outras células do sistema de defesa, o que garante uma memória imunológica maior do que a gerada pela infecção natural. Quando o vírus de verdade chega ali, o corpo já está preparado para enfrentá-lo.

Porque pessoas que tomaram a vacina da Covid-19 ainda ficam doentes? 

Não dá para pensar em uma vacina que vai impedir você de se infectar. Você só não pega o vírus se ficar totalmente isolado, ou viver usando máscara, ou se colocar um saco no pescoço (com a licença do sarcasmo), mas aí você também não respiraria, certo? Como expliquei, o que o imunizante faz é preparar o sistema imunológico para o encontro com o vírus. 

Então, mesmo que você tenha sintomas, muito provavelmente não estará em risco de um quadro grave e eliminará uma carga viral menor no ambiente. Ou seja, transmite menos o vírus. É assim que controlamos a gripe todos os anos. 

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Cada um responde de um jeito às vacinas, a imunidade é um fator muito individual e dependente do ambiente, hábitos e fatores fisiológicos. Contudo, elas foram testadas para desencadear essa resposta padrão de proteção contra casos graves e mortes.

Infelizmente, a grande maioria dos agravamentos que vemos hoje na Covid-19 ocorrem em pessoas que não estão com o ciclo vacinal de três doses completo. Estacionamos a cobertura em metade da população.  

Vacinas da Covid-19 podem causar trombose ou outras doenças graves? 

Esse é um dos principais medos das pessoas por conta da desinformação. Mas em poucos dias o organismo elimina toda a vacina, o que fica é apenas a memória imunológica. Vamos pegar como exemplo o inchaço dos gânglios que levaram a confusões na mamografia de mulheres vacinadas, por sugerirem nódulos nos seios. 

Essa estrutura, que é parte das nossas defesas, de fato pode ficar inchada por um tempo, mas é apenas um sinal de que o sistema imune está agindo e produzindo as células que gerarão imunidade contra o vírus. 

A vacina em si não está mais ali e não pode causar problemas em longo prazo, diferente do coronavírus, que pode atacar vários órgãos e provocar diversos problemas, inclusive a trombose.

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Mesmo os estudos que relacionam a vacina com trombose são estudos retroativos [observam a incidência de um evento em uma população depois que eles já aconteceram], que são importantes para delinear ações científicas, mas não são conclusivos.

A formação de trombos é um processo complexo e requer um trabalho muito mais profundo para garantir que aquilo ocorreu devido à vacina, não por causa da doença, a Covid-19 por exemplo, ou diversos outros fatores. 

[Nota da reportagem: Um tipo muito específico de trombose é associado somente às vacinas de vetor viral, e ainda assim considerado uma reação muito rara.] 

Hoje vemos vários mitos se espalhando em relação à vacina da Covid. A desconfiança em relação a esse imunizante tem se espalhado para outras doses?

Sim, e isso contribui para a situação atual das coberturas vacinais. Quando um ministro ou um presidente fala algo contra as vacinas, isso tem outro alcance, se distribui em uma rede até difícil de imaginar. É complicado calcular o prejuízo. 

Claro, durante a pandemia havia um medo enorme de sair de casa, que também atrapalhou a vacinação, mas nesse momento o trabalho do Programa Nacional de Imunizações tem que ser intensificado. No entanto, nada justifica o que o ex-presidente e ex-ministros fizeram para atrapalhar a vacinação. 

Algo é fato: se pararmos de tomar vacinas hoje, será um desastre, voltaremos ao período medieval. Quantas doenças controlamos por causa delas? Imagine voltar a ter surtos de sarampo, caxumba, pneumonia, poliomielite

O quanto nosso conhecimento sobre tecnologia em vacinas evoluiu? Como deve ser o futuro?

Evoluímos bastante, mas essas tecnologias que estão surgindo agora já eram estudadas há muito tempo. A de RNA mensageiro, para termos ideia, era testada desde os anos 1990. A plataforma VLP [vírus like particle, ou partícula semelhante ao vírus], com a qual trabalho hoje em dia, já é usada para a hepatite B e para o HPV

Mas isso não quer dizer que teremos novas vacinas para todas as doenças ou que as velhas pararam de funcionar. O que ocorre é que as mais antigas, como as de vírus inativado, podem precisar de uma espécie de “viagra”, que é o adjuvante, mas isso não traz nenhum problema. 

+ Leia tambémO estado da arte das vacinas: onde estamos e para onde devemos ir

Tudo depende da capacidade do país em questão de produzir as vacinas e do contexto em que elas serão aplicadas. A melhor vacina é a que está acessível à população, pois todas funcionam. Se a ANVISA aprovar, eu confio! Se nossas pérolas, como o Butantan ou a Fiocruz, produziram, eu confio!

E tomo as vacinas feliz da vida, pois acredito que podemos voltar a ser o país da vacinação, ainda valorizando a ciência e inovação nacional.

Aproveitando o gancho dos adjuvantes, essa é outra fonte frequente de desinformação. Ingredientes como iodo e alumínio costumam ser citados como nocivos. O que você tem a dizer sobre isso?  

No livro, falo sobre esse assunto. As pessoas falam muito do alumínio, mas o que há na vacina é o sal do alumínio, é como se estivéssemos tomando o sal de cozinha (neste caso cloreto de sódio).

Ao colocar sal em uma ferida, ela gera uma resposta inflamatória muito rápida, e um processo semelhante ocorre na vacina: esse ingrediente ajuda o corpo a montar sua resposta de defesa, atraindo os componentes do sistema imunológico, ajudando a manter o antígeno vacinal por mais tempo em nosso corpo, etc. 

Aproveito para lembrar que, quando o pessoal diz que a vacina vai ficar em nosso corpo por muito tempo, eu digo que isso é o que queríamos, pois assim gerarmos uma resposta imune e uma memória imunológica mais robustas. Vejam que, na verdade, até buscamos estratégia para manter os antígenos vacinais no corpo por um tempinho a mais, por exemplo com o uso desses adjuvantes.

Se houvesse algum problema com o alumínio, nós nem estaríamos aqui, porque há cem anos usamos essa substância, que se tornou um dos adjuvantes mais presentes nas vacinas. A mesma coisa ocorre com o iodo, com o qual entramos em contato inclusive num simples banho de mar. 

Agora me diga: tem coisa mais gostosa do que tomar uma dose de iodo com sais minerais e cloreto de sódio num banho de mar? Oxente, ajuda a curar até feridas e na cicatrização. Um sucesso!

Larguemos de ser bestas e vamos nos vacinar! Vacina é vida!

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