Entenda o debate sobre o rastreamento do câncer de próstata no Brasil
Ministério da Saúde publicou nota técnica afirmando que a prática provoca danos à saúde do homem
Em outubro, pouco antes do início do Novembro Azul, o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer (Inca) publicaram uma nota técnica conjunta em que recomendam o não rastreamento populacional do câncer de próstata.
O método consiste na realização sistemática de exames como o toque retal e a dosagem do PSA em homens que não apresentam sintomas, com o objetivo de diagnosticar o tumor em fase inicial.
O documento argumenta que a utilização desse tipo de estratégia aumenta significativamente a identificação da doença, mas não promove uma ampla redução na mortalidade, além de trazer danos relevantes para a saúde do homem.
Além disso, muitos pacientes com a doença menos agressiva tendem a morrer de outras causas que não o câncer.
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A elaboração da nota técnica teve respaldo de revisões sistemáticas sobre o tema, como consta nas referências bibliográficas do documento. Contudo, o conteúdo se tornou alvo de discussões entre a comunidade médica.
A Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), por exemplo, divulgou nota oficial em que se posiciona de maneira contrária à do Ministério da Saúde. Já a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) recomenda uma tomada de decisão individualizada em relação ao rastreio.
VEJA SAÚDE conversou com especialistas de diversas áreas para esclarecer os principais pontos da questão.
O que é o rastreamento
Uma das principais ações de controle do câncer, a detecção precoce pode ser dividida em duas medidas principais: o diagnóstico precoce de pessoas com sinais indicativos da doença e o rastreamento de assintomáticos.
Um dos tipos de rastreamento mais conhecidos é aquele realizado para o câncer de mama. A mamografia permite identificar alterações relacionadas ao tumor. No Brasil, o exame é indicado para todas as mulheres com idade entre 50 a 69 anos, uma vez a cada dois anos, e algumas sociedades médicas recomendam a realização a partir dos 40 anos.
Para o câncer de próstata, os exames de rastreio são o toque retal e o teste de sangue para avaliar a dosagem do antígeno prostático específico, mais conhecido pela sigla PSA em inglês.
Segundo o Inca, o rastreamento nesse caso beneficia mais indivíduos assintomáticos que têm maior chance de ter a doença. No documento de orientações sobre o assunto, essa indicação está clara:
“Cabe ressaltar que diretrizes nacionais e internacionais recomendam a utilização do exame de antígeno prostático específico (PSA) e toque retal para avaliação de homens com elevado risco para neoplasia prostática significativa, e em homens com sintomas urinários que, embora inespecíficos, podem também estar associados ao câncer de próstata, necessitando de confirmação do diagnóstico”.
Aumentam o risco fatores como idade acima de 60 anos e histórico familiar de pai ou irmão com esse tipo de câncer. Além disso, ele é mais comum em homens negros devido a questões genéticas e de sensibilidade da ação da testosterona no organismo.
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Riscos e benefícios
O rastreamento universal da população masculina apresenta controvérsias.
A principal questão é que pode haver um excesso de diagnósticos, incluindo casos de baixa agressividade, que não requerem tratamento. Nesse contexto, pacientes são submetidos a biópsias, que podem levar a complicações ou a tratamentos com potencial impacto na qualidade de vida.
Mas, se a medida é útil para o câncer de mama, por que não funcionaria da mesma forma para a próstata? Quem explica esse ponto é a pesquisadora Renata Maciel, chefe da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede Coordenação de Prevenção e Vigilância do Inca.
“Estamos falando de doenças bem diferentes tanto na sua fisiologia quanto na tecnologias disponíveis para detecção. Atualmente, elas não se equiparam na sensibilidade e na forma de identificar a doença o mais precocemente possível”, diz Renata.
A especialista do Inca acrescenta que, no caso dos tumores que afetam a mama, o uso da mamografia como método de rastreamento tem benefícios comprovados cientificamente, tanto no diagnóstico precoce quanto na redução de mortalidade.
Em relação ao câncer de próstata, embora os exames de toque retal e de PSA tenham suas indicações, elas são limitadas.
“Os estudos mostraram que, entre as tecnologias que nós temos disponíveis, os benefícios não superam os possíveis riscos para essa população assintomática”, diz Renata.
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Um aspecto relevante da doença na glândula masculina é que a sua evolução clínica ainda não é bem conhecida.
Sabe-se, por exemplo, que alguns tumores têm crescimento progressivo, enquanto boa parte dos outros apresentam um comportamento chamado indolente, ou seja, evoluem de forma lenta, sem chegar a apresentar sinais durante a vida ou a ameaçar a saúde.
Com as estratégias disponíveis atualmente, nem sempre é possível afirmar, no momento do diagnóstico, qual será o comportamento de um tumor da próstata.
Por isso, de acordo com o Ministério da Saúde, a detecção de mais casos não se traduz em mais chances de cura. Com o rastreamento amplo, muitos desses cânceres indolentes seriam detectados desnecessariamente, gerando procedimentos e tratamentos também desnecessários.
De acordo com a nota técnica, esse sobretratamento pode gerar importante impacto na qualidade de vida dos homens, como as disfunções sexual e urinária.
“A suspeita identificada no rastreamento leva a novos exames para a investigação diagnóstica, podendo gerar necessidade de biópsia e complicações como dor, sangramento e infecções, além de ansiedade e estresse no indivíduo e na família, com pouco benefício aos pacientes”, diz trecho do documento.
Contraponto
A Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT) se manifestou de maneira contrária ao posicionamento do Ministério da Saúde.
A nota oficial, assinada pelo presidente da SBRT, Marcus Simões Castilho, afirma que o acesso e compreensão da população masculina sobre as questões relativas ao rastreamento é limitado no Brasil.
Nesse contexto, a contraindicação do procedimento diminuiria o uso dos serviços de saúde por parte dos homens e poderia trazer prejuízos à população de risco mais elevado para a doença.
“Quando se emite uma nota contrária ao rastreamento — e esse é o motivo que leva o brasileiro ao médico hoje —, você deixa de atender uma parcela da população masculina que agora entende que não precisa mais ir à consulta. O que seria uma oportunidade de fazer diagnósticos de pressão alta, alterações de colesterol, entre outros problemas de saúde”, diz Castilho.
Para o presidente da SBRT, o posicionamento do Ministério da Saúde poderá comprometer os ganhos na diminuição do preconceito sobre o tema, especialmente no contexto da realização do exame de toque retal.
A instituição reforçou que é favorável ao rastreamento para câncer de próstata em homens entre 55 e 70 anos. Além disso, o médico deve discutir benefícios e riscos da prática com o paciente antes de iniciar o protocolo.
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Decisão compartilhada e o protagonismo do paciente
A discussão sobre o tema é de longa data.
O posicionamento mais recente da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) enfatiza que a abordagem quanto ao rastreio deve ser individualizada, considerando aspectos como idade, raça e história familiar.
De acordo com a entidade, a identificação de pacientes em risco de desenvolver a doença de forma mais agressiva, por meio de parâmetros clínicos ou laboratoriais, pode ajudar a personalizar a indicação e frequência das avaliações.
Nesse contexto, a SBU recomenda que homens a partir de 50 anos, mesmo sem apresentar sintomas, procurem um profissional especializado para avaliação. Além disso, aqueles que fazem parte do grupo de risco devem começar esse acompanhamento mais precocemente, a partir dos 45 anos.
“Recomendamos que os exames sejam feitos com base em uma conversa entre o paciente e seu médico, fazendo disso uma decisão compartilhada”, afirma o médico Alfredo Canalini, presidente da SBU.
Na nota técnica, o Ministério da Saúde também orienta a ampla discussão sobre os possíveis riscos e benefícios com os indivíduos que solicitarem exames de rastreio.
O presidente da SBU avalia ainda que não há necessariamente antagonismo entre os posicionamentos.
“É bom que haja visões e abordagens diferentes sobre o mesmo tema porque isso provoca o debate. Isso faz com que as pessoas possam decidir o que querem fazer de maneira mais consciente”, diz Canalini.
Doença silenciosa
O câncer de próstata é considerado silencioso, já que não costuma apresentar sintomas nas fases iniciais. Alguns indivíduos podem ter dificuldades urinárias, como diminuição do jato, maior necessidade de ir ao banheiro, além da presença de sangue na urina.
O exame de toque permite verificar a estrutura da glândula, possíveis sinais de aumento ou outras alterações. Com o envelhecimento, ela pode aumentar de tamanho naturalmente, sem que haja indícios de qualquer problema, um quadro chamado hiperplasia benigna da próstata.
Para ajudar no diagnóstico, também é utilizado o exame de PSA. O aumento no nível dessa proteína produzida naturalmente pela glândula é medido no sangue, e pode indicar a necessidade de aprofundar a investigação de tumores, mas nem sempre está relacionado a alguma malignidade.
Os achados são avaliados de maneira conjunta com fatores como o tamanho da próstata, idade e presença de nódulos ou inflamação.
A confirmação pode ser realizada através da biópsia, que consiste em um procedimento cirúrgico para retirada de fragmento de tecido prostático para análise.
O tratamento depende do perfil de cada indivíduo e da extensão do tumor. As estratégias incluem cirurgia, radioterapia e tratamento hormonal. Em alguns casos, pode ser feita a vigilância ativa, com o acompanhamento periódico, sem intervenções a princípio.
A cada ano, são esperados 70 mil novos casos de câncer de próstata no Brasil, de acordo com estimativas do Inca.