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Enquanto o remédio não vem

Rigor, descaso ou falta de recurso? Ministério da Saúde atrasa incorporação de remédio de alto custo ao SUS e continua a aprovar novos medicamentos

Por Grupo AME/CDD
Atualizado em 13 nov 2020, 18h02 - Publicado em 12 nov 2020, 18h00
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  • Quando abre os olhos todos os dias pela manhã, Carlos Eduardo Baptista fica com a visão turva. Minutos depois, se estabiliza, mas não o suficiente para digitar no teclado do celular. Percebe que enxerga cada vez menos e passou a responder com mais frequência às mensagens com recurso de voz. Diagnosticado há cinco anos com diabetes tipo 2, Carlos convive com o medo de um dia acordar cego.

    O edema macular diabético (EMD) pode ocorrer em qualquer fase da retinopatia diabética, a complicação ocular mais comum em quem tem a doença e a principal causa de cegueira irreversível em pessoas com idade ativa. Tem caráter progressivo. Durante muito tempo, a terapia padrão foi de fotocoagulação focal, que usa o calor de um laser para selar os vasos sanguíneos na retina. Atualmente, o tratamento que se mostra mais eficiente é com antiangiogênicos, de acordo com guias mundiais de tratamento. Em novembro de 2019, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia – Conitec – do Ministério da Saúde incorporou um dos antiangiogênicos disponíveis comercialmente no Brasil, o aflibercepte (Eylia®), e agregou ao Sistema Único de Saúde (SUS) o referido tratamento do componente especializado. A decisão do Ministério foi publicada por meio da portaria nº 50, de 5 de novembro de 2019, no Diário Oficial da União (DOU). Pela resolução do Ministério da Saúde, o medicamento estaria disponível à população em 180 dias a partir da data da publicação do ato administrativo, ou seja, para aflibercepte: julho de 2020. Após um ano, resolvido? Não. Um atraso angustiante para quem conservou alguma esperança no acesso gratuito como paciente.

    Para que os hospitais e centros de referência possam aplicar a injeção intravítrea de Eylia com segurança é necessário que o Ministério da Saúde publique também um PCDT, Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas. E foi nessa etapa que emperrou a oferta do remédio, produzido pela Bayer. Silvia Sfeir, diretora de acesso da empresa no Brasil, afirma que a multinacional “tem feito todos os esforços para apoiar as ações junto ao governo no sentido de disponibilizar a droga para atender os pacientes do SUS tão logo o PCDT seja publicado, evitando, assim, que muitas pessoas venham a perder a visão de forma permanente”. Todos os processos regulamentares de incorporação foram praticados pelo Ministério da Saúde: submissão, análise, consulta pública e discussão em plenárias da Conitec. Inclusive com a dotação orçamentária nos planos anuais 2020 e 2021 definidos, com recursos pactuados com as esferas municipal, estadual e federalA porta-voz diz que a Bayer vem sistematicamente buscando dialogar com o Ministério da Saúde para verificar as razões da não publicação do referido Protocolo Clinico de Diretrizes Terapêuticas (PCDT) e assim o cumprimento dos prazos para disponibilização de aflibercepte no SUS, e as respostas são de que o mesmo será publicado, porém isso não acontece.

    O Ministério da Saúde aprovou e disponibilizou o PCDT para o tratamento de Retinopatia Diabética, incluindo aflibercepte para o tratamento do Edema Macular Diabético, para consulta pública em fevereiro de 2020. O protocolo foi aceito pelas sociedades médicas e de pacientes com cerca de 3.000 contribuições favoráveis em sua consulta pública. A partir da validação dessas contribuições, ocorrida em junho deste ano, faltaria – apenas – a assinatura da portaria que autoriza o PCDT para que entrasse em vigor. Em nota, o Ministério da Saúde informou: 

    “Está em trâmite interno atualmente a criação de um PCDT para Edema Macular Diabético. A ausência, no entanto, não impede que o medicamento seja incorporado ao SUS e, no caso em questão, o medicamento está incorporado ao SUS. Cabe ressaltar que, independentemente dos processos de incorporação e efetivação da oferta de tecnologias em saúde no SUS, os gestores estaduais e municipais têm autonomia para ofertar aos seus pacientes o medicamento aflibercepte”.

    Mas a própria Conitec, vinculada ao Ministério da Saúde, explica a necessidade do PCDT, no Relatório de Recomendação, de 90 páginas, publicado com a decisão da incorporação de aflibercepte ao SUS: 

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    “São documentos que estabelecem critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS. Devem ser baseados em evidência científica e considerar critérios de eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade das tecnologias recomendadas”.

    O Relatório de Recomendação ainda expressa na decisão:

    “Incorporar o aflibercepte para o tratamento de pacientes com edema macular diabético, condicionado à negociação de preço a partir da proposta apresentada pelo demandante e à elaboração do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Dada pela Portaria nº 50, publicada no Diário Oficial da União nº 215, seção 1, página 195, em 06 de novembro de 2019”.

    Nesse jogo de empurra-empurra, é Carlos quem vai perdendo a visão. A expectativa pela injeção intraocular de aflibercepte, que apresenta em países europeus resultados significativos na reversão de perda de acuidade visual, logo virou decepção. Desempregado, não tem feito nenhum tipo de prevenção para barrar a cegueira. O único tratamento – possível para ele no momento – é o controle do diabetes e da pressão arterial. Carlos vai recorrer à Justiça. 

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    “Ao descumprir uma regra que o governo deu pra si mesmo, acaba frustrando pacientes que convivem com doenças crônicas e hospitais que precisam mudar protocolos de conduta.” A indignação é do advogado sanitarista Tiago Farina Matos, empenhado em garantir direitos de quem padece da demora do governo. O prazo frustrado do Estado afeta a vida dos dependentes de medicamentos de alto custo, como a de Tania Moyses, diagnosticada há dois anos com retinopatia diabética e edema macular diabético. Tem dia em que a visão está boa, tem dia em que piora. Com a dificuldade para enxergar, anda tropeçando nas coisas. Tania iniciou sessões em hospital particular para tratar o edema com laser, até que pesou no orçamento, e ela agora tem esperança que consiga no SUS. Vivendo na incerteza do tratamento, doentes crônicos recorrem à Justiça. O processo é lento e quem acaba “punido” é o paciente. Mesmo quando decisões judiciais são tomadas, a demora no início da terapia – não poucas vezes – resulta em sequelas graves. O timing do Estado, definitivamente, não está ajustado aos prazos de quem corre contra o tempo. Pacientes que enfrentam outras doenças crônicas também se queixam da demora do Estado. O endocrinologista Fadlo Fraige Filho, presidente da Associação Nacional de Atenção ao Diabetes (Anad), relaciona as mortes por Covid-19 a atrasos de medicamentos que ainda não foram distribuídos gratuitamente: “Teríamos muito menos mortes por Covid-19 no Brasil se o governo tivesse já os incorporado no SUS”. Um dos entraves, segundo o médico, é a mudança de ministros e secretários executivos do Ministério da Saúde. Cada vez que muda um auxiliar do presidente Jair Bolsonaro, o diálogo volta à estaca zero. “Muitas vidas poderiam ter sido poupadas se o remédio estivesse disponível”, lamenta o presidente da Anad. A Sociedade Brasileira de Cardiologia divulgou um estudo que aponta que as mortes por doenças cardiovasculares aumentaram 70% este ano durante a pandemia.

    O advogado Tiago Farina lembra que, embora a Conitec tenha sido criada em 2012, apenas quatro meses atrás as reuniões gravadas começaram a ser disponibilizadas para entidades da sociedade civil que reivindicam direitos de pacientes darem continuidade a terapias na rede pública. Se há oferta publicada no Diário Oficial, o paciente cobra o médico, que cobra o hospital. Investigando a raiz do problema, Farina indaga: “Se o Ministério da Saúde não tem o dinheiro, por que incorpora um medicamento? Se tem a verba, então está gerenciando mal essa questão. Ou não soube negociar valores com o fabricante. O fato é que o remédio não chega ao paciente”, critica Farina. “A Covid-19 desencadeou a morte de portadores de diabetes. Sem dúvida, o vírus foi a causa desencadeante para as mortes”, analisa o dr. Fadlo.

    Custo

    O Ministério da Saúde não respondeu ao nosso questionamento sobre se a eventual falta de recursos está atrasando o processo. O Relatório de Recomendação do remédio informa que o “preço proposto para a incorporação, Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG), do Eylia Solução injetável 40 mg/mL é de R$ 1.159,52”. A análise demonstrou que “a incorporação pode promover economia de até R$ 903 milhões em 5 anos acumulados. (…), demonstrando no cenário considerado mais próximo à realidade do Sistema Único de Saúde um impacto orçamentário incremental de aproximadamente R$ 223,4 milhões no primeiro ano e R$ 665,7 milhões após cinco anos”.

    Maior que o impacto orçamentário da incorporação do remédio é a perda da visão. Pacientes com EMD sem tratamento podem apresentar consequências, como a cegueira, que podem ocasionar mais custos totais ao sistema. De acordo com estudos internacionais, a cegueira apresenta grande impacto na sociedade, não apenas pela grande carga emocional e física ao paciente, mas também pelo enorme peso econômico. O Ministério da Saúde fez um levantamento sobre os gastos médicos da cegueira. Calcula-se que o valor é de R$ 36.791 por evento. Também cabe mencionar que a pessoa cega acaba se aposentando precocemente em idade ativa, tornando-se dependente de familiares, perdendo qualidade de vida e onerando ainda mais a Previdência Social.

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    Espelho para o mesmo problema

    Iracema Miguel, de 43 anos, convive há três décadas com o diagnóstico de asma grave e um quadro de falta de ar cotidiano. Nesse mesmo período, iniciou um tratamento à base de corticoides e, todos os anos, passa por até três internações por conta de sintomas como extrema dificuldade de ventilação pulmonar ou respiração muito rápida, cianose, tosse, chiado e peito inflamado. Diante disso, os médicos responsáveis por Iracema receitaram a aplicação mensal do medicamento omalizumabe, conhecido como Xolair, da farmacêutica Novartis, que teve em 2019 uma resposta positiva da Conitec quanto à sua incorporação ao SUS, por meio da portaria nº 64, assinada no dia 27 de dezembro de 2019. Desde março deste ano, a atualização do PCDT para o tratamento de asma grave está em andamento sem previsão de conclusão. No total, somam-se 318 dias de atraso para que o remédio seja parte da tabela do Sistema Único de Saúde.

    Segundo o doutor Rafael Stelmach, presidente da Fundação ProAr e professor doutor da Divisão de Pneumologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, o Xolair já é utilizado há quase uma década no laboratório de asma do HCFMUSP, local onde Iracema faz seu acompanhamento. “O omalizumabe já está no mercado brasileiro há algum tempo e está disponível em algumas instituições de saúde suplementar e hospitais públicos de referência. Esse atraso não é apenas de dias, mas de anos de possibilidade de melhores tratamentos para a população. Nesse atraso histórico que já vivemos, a população que mais precisa fica sem acesso e os pacientes vão piorando, até que alcancem a forma grave da doença. Só tem acesso ao tratamento adequado, então, quem pode arcar com uma a duas aplicações mensais do remédio ou quem recorre à judicialização”, conta Stelmach.

    Por conta dessa disparidade cronológica de acesso e qualidade de vida, Iracema espera há dois anos pelo momento em que terá suas injeções disponíveis. “Sinto um misto de esperança e frustração por estar há tanto tempo esperando por algo que pode melhorar minha vida”, desabafa. Dados da Sociedade Brasileira de Pneumologia apontam que 20 milhões de pessoas convivem com asma no Brasil e cerca de 3% a 7% desse grupo desenvolve a forma grave da doença. “A incorporação de imunobiológicos – classe à qual o omalizumabe faz parte – pode representar a diferença entre viver e morrer. O impacto na qualidade de vida é imenso, mas podemos considerar os impactos sociais e econômicos que ela apresenta, porque esse tratamento – que é comparado com uma roupa sob medida, pois atua diretamente na causa do quadro inflamatório – devolve a produtividade a quem o utiliza, reduzindo o número de medicamentos diários e internações. A vida de muitas pessoas pode ser mudada por uma pressão popular porque pede apenas o cumprimento de uma regra e por isso nossa luta é tão importante. Queremos garantir o direito de viver com qualidade”, diz a presidenta da Associação Brasileira de Asmáticos, dra. Zuleid Mattar.

    Enquanto o remédio não vem, a vida de quem precisa de um medicamento de alto-custo também ganha uma outra contagem e, por isso, crescem os processos de judicialização. No prazo de 180 dias, determinado pelo próprio Poder Executivo para que um remédio chegue à população, é prevista a abertura de licitações públicas com fornecedores. Contudo, o critério de emergência ao qual se aplica a disponibilização de um remédio via judicial ultrapassa a barreira da transparência quanto à escolha de uma empresa. Para Paulo Benevento, advogado sanitarista e consultor jurídico do Grupo AME/CDD (Amigos Múltiplos pela Esclerose e Crônicos do Dia a Dia), tais compras, então, são feitas por contratação direta. “Os gestores – federais, estaduais e municipais –, quando deparam com a necessidade de adquirir rapidamente determinado remédio, publicam, então, extratos de dispensa de licitação com a única justificativa de emergência. Isso é uma constância em todos os casos que estudamos. Mas penso que emergência ou calamidade pública são cenários muito diferentes do que vemos como uma tendência na incorporação de medicamentos de alto custo. Como a urgência pode existir se tratando de um remédio já deveria estar disponível para a população em todo o país há muito tempo, cujo o prazo de 180 dias já se esgotou há 300, 400 dias? Não há uma emergência, e sim um descumprimento”, conclui.

     

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