De um lado, o vírus do herpes, responsável por bolhas que aparecem nos lábios e nos genitais. Do outro, o melanoma, o mais agressivo câncer de pele. Se os dois subissem no ringue do corpo humano, quem levaria a melhor? Para responder a essa pergunta — e bolar um tratamento inusitado contra o tumor —, foram convocados cientistas de 64 centros de pesquisa espalhados por Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e África do Sul. E, a julgar pelo resultado dos testes com 436 voluntários, todos com melanoma inoperável e já disseminado, o agente infeccioso derrubou o adversário. Vitória para… os pacientes.
Essa estratégia de contra-ataque ao câncer é a essência da terapia T-Vec, que se vale de vírus modificados em laboratório e foi desenvolvida e lançada pela farmacêutica Amgen em solo americano e europeu.
Segundo Daniel Martinez, diretor médico da companhia no Brasil, 40% dos indivíduos avaliados tiveram resposta ao tratamento, 16,6% deles se livraram por completo das lesões e 95% daqueles que reagiram bem ao método permaneceram vivos por mais de três anos após o estudo.No comparativo, os pacientes não submetidos à “virusterapia” viveram, em média, menos de dois anos. “São resultados promissores, ainda mais considerando quão agressiva é a doença”, afirma Martinez.
Atenção a um detalhe fundamental: o vírus do herpes que foi para a batalha não era um vírus como outro qualquer. Trata-se de um agente geneticamente modificado. Graças à engenharia genética, o vírus deixa de ser capaz de causar os danos do herpes. Melhor: passa a desferir seus golpes apenas nas células do câncer, poupando as saudáveis. E tem um bônus: ele ainda estimula a imunidade do paciente a reagir e partir para o ataque.
Após o fim da luta, ops, dos estudos, o T-Vec conquistou os cinturões (perdão, o aval!) das agências regulatórias dos EUA e da Europa e hoje está disponível para reforçar o tratamento da doença — a terapia é particularmente bem-vinda nos casos em que o tumor se encontra localmente avançado.
O mecanismo de ação se baseia em um vírus oncolítico, isto é, que destrói células cancerosas. Lá fora, o tratamento consiste de uma série de injeções com o princípio ativo vivo — uma dose a cada duas semanas ao longo de seis meses — aplicadas em centros de referência com equipes treinadas. Os efeitos colaterais são idênticos aos de um quadro viral: febre, náuseas e calafrios.
Martinez estima que a inovação demore uns cinco anos para atuar no Brasil. O T-Vec ainda passa por pesquisas que analisam sua eficácia quando aliado a outras terapias. Sim, porque a ideia não é que o vírus lute sozinho contra o melanoma. “A combinação de múltiplos mecanismos de ação tende a aumentar a resposta do tratamento”, explica o médico. É um horizonte animador diante de uma doença com altas taxas de letalidade.
Mas saiba que a ideia de colocar um vírus para se digladiar com o câncer não é exatamente uma novidade. “Na virada do século 20, observou-se que algumas infecções virais podiam levar pacientes a melhoras transitórias”, conta o biólogo Martin Bonamino, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Na época, pacientes com linfoma, por exemplo, foram “tratados” com o vírus da hepatite e alguns apresentaram recuperação temporária. Agora, o advento da engenharia genética e o conhecimento sobre biologia molecular permitem que o conceito seja aprimorado e as táticas se tornem mais seguras e eficientes.
Em outras frentes
Usar vírus para controlar ou curar doenças é um dos ramos da terapia gênica, que emprega os agentes infecciosos modificados para corrigir defeitos genéticos do paciente. Já foram feitos testes na Itália com HIV geneticamente alterado e inofensivo, por exemplo, para sanar enfermidades raras.
A ideia da técnica, batizada de Cavalo de Troia, é utilizar o arcabouço do vírus para introduzir ou corrigir trechos do DNA. A geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, só pondera que essa linha de estudos ainda está em fase experimental.
O T-Vec da Amgen já fez história ao se tornar o primeiro modelo terapêutico contra o câncer desenvolvido a partir de uma versão geneticamente modificada do vírus do herpes. E olha que os cientistas já estão de olho em aplicações que vão além do melanoma. Se depender de outros centros de pesquisa, então, novos vírus entrarão no ringue oncológico.
Testes com os agentes originalmente causadores de pólio e sarampo, a título de exemplo, estão em curso para combater tumores de bexiga, ovário e próstata. “As vantagens dessa estratégia são muitas: os vírus podem exercer seu efeito sem atacar as células saudáveis, reunir diferentes mecanismos antitumorais e permitir até a manipulação de genes, revertendo mutações ligadas ao câncer”, lista o oncologista Rodrigo Munhoz, diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.
A ideia envolve riscos? Sim, mas os estudos estão aí justamente para validar sua segurança e ajustar o que for preciso.
Entenda a terapia que usa um vírus contra o câncer
1. No tratamento batizado de T-Vec, o vírus do herpes modificado invade as células do melanoma, tumor de pele, poupando as células saudáveis. Ele se multiplica ali dentro e desestabiliza a unidade cancerosa, levando-a à destruição.
2. Além do colapso das células tumorais, a presença do vírus faz liberar moléculas conhecidas como antígenos, que permitem às unidades do sistema imune do paciente reconhecer e atacar o câncer. Mais golpes nele.
3. O vírus especial ainda surte um efeito de médio prazo: ele estimula a memória imunológica contra o melanoma, ou seja, células de defesa ficam mais aptas a identificá-lo e atacá-lo caso ele tente resistir ou voltar.
Até tu, zika vírus?!
Aqui no Brasil, um dos maiores vilões do noticiário de saúde dos últimos anos poderá render uma arma preciosa contra tumores de cérebro. Duas equipes, uma da Universidade de São Paulo (USP) e outra da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizam experimentos com o zika, vírus transmitido por mosquitos e que causa microcefalia em bebês.
Na Unicamp, a equipe de Rodrigo Ramos Catharino planeja encontrar uma solução para o glioblastoma, o tipo mais comum de câncer cerebral. Na USP, os alvos dos cientistas Mayana Zatz e Oswaldo Okamoto são o meduloblastoma e o teratoide rabdoide atípico (ATRT, na sigla em inglês), os tumores do sistema nervoso central que mais atingem crianças de 2 a 5 anos.
No trabalho feito na capital paulista, bastante divulgado no Brasil e no exterior, camundongos receberam enxertos de células tumorais humanas no cérebro. Após o avanço da doença, foram tratados com injeções de zika. E por que o dito-cujo? Ora, sabe-se que esse vírus tem uma preferência natural por células nervosas que se multiplicam velozmente — caso das células de um bebê na barriga da mãe e (eureka!) também de tumores.
Para mensurar direitinho o expediente, os estudiosos montaram três grupos de controle. No primeiro, injetaram o tumor no cérebro dos roedores e, em seguida, os infectaram com o zika. No segundo, as cobaias receberam apenas as células tumorais. E, no terceiro, só o vírus. Em 20 dos 29 camundongos tratados, o zika conseguiu reduzir o tamanho do tumor.
Em sete deles, o que parecia impossível aconteceu: a remissão foi completa. O tumor desapareceu até em casos com metástase, quando um câncer se espalha por outros órgãos. “O resultado surpreendeu a todos”, conta a geneticista Mayana Zatz. “Já tínhamos ouvido falar em redução do tumor, mas nunca no completo sumiço dele”, completa.
Os camundongos do primeiro grupo, livres do câncer, viveram por mais 80 dias. Já os roedores do segundo e do terceiro grupos morreram em duas semanas. “Se o tratamento tivesse sido feito em um estágio mais precoce, a sobrevida poderia ser ainda maior”, especula Okamoto. O próximo passo é avaliar a segurança e a eficácia do procedimento em humanos — ainda não há previsão de quando essa fase vai começar.
Nessa etapa, será preciso obter o zika vírus purificado e em condições ideais para aplicá-lo em pessoas. Em seguida, serão recrutados dois ou três pacientes que já não respondem aos tratamentos convencionais. Se o resultado for positivo, o estudo será expandido para um maior número de voluntários.
A expectativa é que o mesmo vírus que, na epidemia de 2015, causou a microcefalia em centenas de bebês ajude, um dia, a livrar tantas outras crianças do câncer de cérebro. É a ciência brasileira usando um peso-pesado para nocautear outro. E a gente já tem um lado para torcer nessa luta.
Os tipos de vírus que causam câncer
HPV: Transmitido nas relações sexuais, pode levar a câncer de colo de útero, boca, garganta, pênis e ânus.
HLTV: É da mesma família do HIV e disseminado por vias sexuais e seringas. Associado a leucemia e linfoma.
Epstein-Barr: É o causador da mononucleose, a doença do beijo. Está ligado a linfomas e tumores de nasofaringe.
Hepatite B: O contágio é sexual e o vírus ataca o fígado. Anos de agressão propiciam tumores ali. A exemplo do HPV, tem vacina.
Hepatite C: A transmissão ocorre sobretudo pelo sangue. A doença é silenciosa e pode evoluir para cirrose ou câncer de fígado.