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Cigarro não previne ou trata o coronavírus, como sugeriu um estudo

Pesquisa associa o tabagismo a uma menor probabilidade de Covid-19 e defende experimentar o uso de nicotina em humanos para tratá-la

Por Theo Ruprecht
Atualizado em 31 Maio 2021, 10h16 - Publicado em 24 abr 2020, 21h01
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  • Um estudo francês divulgado no 22 de abril chamou atenção por associar o cigarro a um menor risco de infecção por coronavírus (Sars-CoV-2). Mas o trabalho apresenta limitações consideráveis e ignora evidências científicas que apontam no sentido oposto.

    De quebra, no dia 23 de abril, dois autores do mesmo trabalho publicaram, em conjunto com outros dois cientistas, um artigo em que utilizam esse levantamento e outros argumentos para defender testes clínicos com o uso de nicotina para o tratamento e mesmo para a prevenção da Covid-19. Só tem um porém: um dos indivíduos que assina esse comentário é o neurobiólogo Jean-Pierre Changeaux, que já foi financiado pela indústria do tabaco, segundo uma reportagem do jornal francês Le Monde, publicada em 2012.

    A suposta associação entre tabagismo e menor risco de coronavírus

    De antemão, um alerta: a pesquisa francesa não foi avaliada por outros especialistas antes de ser divulgada. Esse processo é importante para que a metodologia do experimento, a coleta dos dados e outras informações sejam esmiuçadas criteriosamente antes que os resultados ganhem os holofotes.

    “Isso já é altamente criticável. Sem revisão de pares, é difícil confiar nos dados apresentados”, afirma o pneumologista José Eduardo Afonso Júnior, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

    Agora vamos ao estudo em si. Ele começou reunindo informações sobre quase 500 pacientes com coronavírus atendidos em um único hospital universitário. Observou-se que 4,4% das pessoas internadas por causa da infecção e 5,3% das que foram tratadas “a distância” fumavam diariamente.

    A partir daí, comparou essas taxas com o índice de tabagistas na França em 2018, que foi de 25,4% — um número muito maior. “Nosso estudo sugere fortemente que fumantes diários têm uma probabilidade muito menor de desenvolver uma infecção por Sars-CoV-2, quando comparados à população em geral”, escrevem os autores.

    “Mas essa interpretação está enviesada”, critica Afonso Júnior. Ele ressalta que um dos principais fatores de risco para complicações por coronavírus, que exigem uma ida ao hospital, é a idade. O próprio estudo francês corrobora esse fato: entre os internados por coronavírus avaliados, a média de idade foi de 65 anos.

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    Ocorre que, na maioria do mundo, a porcentagem de fumantes cai naturalmente com o avançar da idade. Em postagens no Twitter, o médico Frederico Fernandes, presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia (SPPT), destaca que, no Canadá, 19,9% das pessoas entre 45 e 54 anos fumavam em 2017. O número cai quase pela metade — para 11,4% — entre os maiores de 55 anos.

    “Entre outras coisas, isso acontece porque os idosos correm um maior risco de apresentarem infarto, câncer e outros problemas em que a cessação do tabagismo é fortemente recomendada”, diz Afonso Júnior. Infelizmente, fumantes também possuem menor expectativa de vida.

    Em última análise, o resultado encontrado na pesquisa francesa pode decorrer da idade avançada, e não do hábito de ficar longe dos cigarros.

    O virologista Paulo Brandão, da Universidade de São Paulo, faz outra ponderação. Não é possível saber se comportamentos mais comuns a quem anda com um maço no bolso — e não o tabagismo em si — estão por trás dos achados.

    “Será que os fumantes, até por saberem que têm os pulmões comprometidos, tendem a seguir mais as regras de isolamento e, com isso, expor-se menos ao vírus?”, indaga. São especulações impossíveis de descartar com esse levantamento e que levantam sérias dúvidas sobre as interpretações dos resultados.

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    “O que temos de informação séria, publicada em periódicos científicos criteriosos, é a de que fumantes infectados pelo coronavírus têm maior probabilidade de evoluírem mal”, aponta Afonso Junior. Ao contrário da pesquisa francesa, essas investigações passaram por aquele crivo de especialistas, a tal revisão de pares.

    Tome como exemplo um levantamento chinês publicado no The New England Journal of Medicine e feito com 1 099 pacientes diagnosticados com Covid-19. Entre os casos leves a moderados, 11,8% eram fumantes e 1,3% já haviam tido esse hábito na vida. Já entre os quadros graves, os números sobem para 16,9% e 5,2%, respectivamente.

    “Além dos estudos sérios que estão disponíveis, sabemos que quem fuma apresenta um risco maior de apresentar complicações por doenças respiratórias diversas”, argumenta Afonso Junior.

    Por essas e outras, entidades como o Instituto Nacional do Câncer (Inca) apontam o cigarro como um potencial fator de risco para agravamento da infecção por Sars-CoV-2.

    A nicotina como nova (falsa) promessa

    Com base nessa pesquisa pra lá de limitada, quatro membros do Instituto Pasteur e do Hospital de Paris, redigiram um artigo com o título: “Uma hipótese nicotínica para a Covid-19 com implicações preventivas e terapêuticas”. Como dissemos, dois dos autores participaram do levantamento que associava o cigarro a menor risco de infecção pelo coronavírus: Zahir Amoura e Makoto Miyara. E um terceiro será abordado mais a frente por suas ligações com a indústria do tabaco.

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    Pois bem: o artigo postula que a nicotina, uma das várias substâncias presentes no cigarro, reduz a quantidade de receptores ACE-2 nas células do nosso corpo. E que o Sars-CoV-2 usa exatamente essa via para invadir as células. Logo, seria interessante testar essa via de ação contra a Covid-19.

    “De fato, a nicotina indiretamente inibe a expressão desses receptores e há evidências de que o vírus se utiliza desse mecanismo para entrar nas células humanas”, afirma Brandão, que estuda a família dos coronavírus. “Mas não fazemos ideia de quanta nicotina seria necessária para gerar algum efeito terapêutico, se é que ele existiria”, pondera.

    Pior: esses receptores são fundamentais para a nossa saúde. “Se a gente de repente acabasse com eles, morreríamos”, informa o virologista.

    Verdade que os autores do artigo não defendem o consumo de cigarro para evitar ou tratar o coronavírus. Contudo, em uma reportagem da Agence France-Presse que foi replicada por diversos sites, eles propõem a realização de pesquisas em seres humanos para avaliar a eficácia de adesivos de nicotina contra o coronavírus.

    “Isso é tudo o que o mundo não precisa nesse momento”, discorda o pneumologista José Eduardo Afonso Júnior. Segundo ele, embora a concentração de nicotina nos adesivos seja menor do que nos maços de cigarro, ela ainda é alta. Até porque esse dispositivo é empregado para amenizar as crises de abstinência de pessoas que desejam parar de fumar. Conclusão: dar adesivos de nicotina a sujeitos que não fumam pode fomentar a dependência.

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    “Sugerir um tratamento com pouco embasamento científico, mas que pode viciar, não é uma boa estratégia. Vamos tentar consertar um desastre causando outro?”, questiona Afonso Junior. A nicotina, além de provocar dependência, está atrelada a doenças cardiovasculares.

    Como se isso tudo não bastasse, o neurobiólogo Jean-Pierre Changeux — um dos que elaborou esse artigo sobre a hipótese nicotínica — já teve relações com a indústria do tabaco. De acordo com uma reportagem de 2012 do Le Monde, ele recebeu, na década de 1990, centenas de milhares de dólares de investimento do Conselho de Pesquisa Para o Tabaco, uma entidade apoiada por diferentes marcas de cigarro, para seus estudos.

    Changeux, por exemplo, publicou um trabalho sobre os efeitos analgésicos da nicotina. E não: não há diretrizes médicas que recomendam recorrer a essa substância para aliviar dores hoje em dia.

    Em uma nota conjunta, a ACT Promoção da Saúde, a Associação Médica Brasileira, a Sociedade Brasileira de Pediatria, a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, a Fundação do Câncer, a Campaign for Tobacco-Free Kids e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia condenaram o artigo francês que defende a hipótese nicotínica:

    “O estudo sobre a nicotina em questão não foi revisado por pares e não faz referência a aprovação por nenhum comitê de ética em pesquisa. E, além disso, deve-se destacar que ao menos um dos autores já foi financiado no passado pela indústria do tabaco. A nicotina é uma droga psicoativa causadora de dependência e de graves danos ao sistema cardiovascular, como infartos e tromboses. O fumante também tem mais chances de desenvolver doenças pulmonares e vasculares, sistemas muito afetados nos infectados pela Covid-19. Dessa forma, a hipótese de uso de nicotina na prevenção ou tratamento da Covid-19 pode trazer o risco de causar mais danos ao doente, sem contar com a instalação de uma nova doença – o tabagismo”

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    Confira a nota na íntegra clicando aqui.

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