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A saúde de quem vive em favelas

Os barracos escondem desafios únicos à saúde, que finalmente foram alvo de um estudo. É hora de discutirmos o bem-estar físico dos moradores da periferia

Por Karolina Bergamo
Atualizado em 1 dez 2017, 18h08 - Publicado em 25 nov 2016, 17h09
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  • “As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade, tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. Foi assim que Carolina Maria de Jesus descreveu no seu diário a favela do Canindé (São Paulo), onde morava. O dia do registro: 19 de maio… de 1958.

    Essa data chama a atenção porque, 59 anos depois, os relatos de Carolina permanecem tão atuais quanto negligenciados — eles inclusive viraram, em 1960, um livro chamado Quarto de despejo: diário de uma favelada. E o impacto desse cenário reverbera profundamente na saúde, como mostra a primeira série abrangente de pesquisas científicas sobre o elo entre a vida nas periferias e o bem-estar físico e mental.

    Publicada no periódico The Lancet, ela compila, em dois relatórios, os poucos estudos disponíveis sobre o tema para identificar fatores de risco entre essa população e algumas formas de contorná-los.

    Esses documentos destacam, logo de cara, o chamado efeito de vizinhança. Ou seja, a alta densidade de seres humanos por metro quadrado, associada a um saneamento básico precário, potencializa a dispersão de variados problemas de saúde. “A contaminação da água pelo esgoto é um problema comum, que faz proliferar doenças infecciosas”, justifica Waleska Caiaffa, epidemiologista da Universidade Federal de Minas Gerais e uma das autoras dos estudos do The Lancet.

    Por outro lado, o tal efeito de vizinhança pode se converter em uma ótima oportunidade para ações positivas afetarem bastante gente. Ao propiciar uma remoção adequada e frequente de lixo na favela, você livra milhares de brasileiros de enfermidades como a leptospirose, espalhada pelos ratos, e a dengue, transmitida pelo mosquito Aedes Aegypti. Ao fomentar o saneamento básico, combate a diarreia.

    Trocando em miúdos, não dá mais para ignorarmos essa população sob o pretexto simplista de que ela vive ilegalmente. Defender esse pensamento é exigir que um indivíduo suba na vida e se afaste de suas origens para ter acesso a direitos que são garantidos a todos pela Constituição. De acordo com o levantamento, uma boa solução seria agir diretamente na favela em vez de tentar tirar toda essa gente dos barracos para só então oferecer a ela cuidados básicos.

    Outra conclusão da pesquisa é a de que, nesse ambiente, as crianças são especialmente vulneráveis. Segundo os especialistas, a combinação recorrente de desnutrição e diarreia leva a um crescimento atrofiado e provoca efeitos em longo prazo sobre o desenvolvimento cognitivo dos pequenos. Carolina, que era negra assim como a maioria das pessoas que habitam as favelas brasileiras, tinha três filhos: Vera Eunice, João e José Carlos.

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    E não é raro encontrar passagens em seu livro que versam sobre moléstias que os acometiam. No dia 17 de julho de 1958, Vera estava febril e vomitando: “Eu fui no Seu Manuel vender uns ferros para arranjar dinheiro. Estou nervosa com medo da Vera piorar, porque o dinheiro que eu tenho não dá para pagar médico. (…) Hoje estou rezando e pedindo a Deus para a Vera melhorar”.

    Sua filha melhorou, mas a angústia de Carolina se estende por décadas. Várias outras mães (e avós, e tias…) ainda sofrem com uma falta de assistência quando seus familiares ou elas próprias estão de cama. No dia 15 de julho de 1958, Carolina escreveu: “Supliquei para o Padre Donizeti para eu sarar. Graças a Deus que atualmente os santos estão protegendo. Porque não sobra dinheiro para eu ir no médico”.

    A favela como protagonista

    Em outubro deste ano, líderes mundiais foram a Quito, no Equador, para participar da Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III). O objetivo principal do evento era discutir os desafios enfrentados pelas cidades e seus processos de urbanização, e elaborar um plano de ação comum a ser seguido. Foi então que surgiu a “Nova Agenda Urbana”, uma lista de metas que valerão pelos próximos 20 anos.

    Entre propostas como a criação de um sistema de transporte mais ecológico e de uma gestão mais sustentável dos recursos naturais, o documento enfatizou a urgência de olhar para as condições de habitação em áreas urbanas. De acordo com o relatório, 40% de todo o crescimento urbano hoje ocorre em favelas.

    Há quase um bilhão de pessoas morando em assentamentos informais ao redor do globo. Por aqui, 12 milhões de brasileiros estão nas periferias, segundo dados do livro “Um país chamado favela”, da Central Única das Favelas (Cufa) e do Instituto de Pesquisa DataFavela. “Nestas áreas, intervenções simples, mas eficazes, tais como telhados com isolamento e iluminação e aquecimento solar de água podem melhorar o nível de vida e reduzir os impactos de ondas de calor e condições meteorológicas extremas”, aponta o documento da Organização das Nações Unidas.

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    O estudo publicado no The Lancet traz diversas perspectivas dos perigos à saúde de quem reside em favelas. Separamos essas ameaças para você ter uma ideia do quanto esse ambiente influencia no bem-estar de seus moradores.

    Doenças infecciosas

    Diarreia e pneumonia, quadros muitas vezes atrelados ao ataque de vírus, bactérias e fungos, são as maiores causas de morte entre crianças com menos de 5 anos. E os experts dizem não haver dúvida de que os pequenos estão em risco maior dentro dos assentamentos informais.

    Por quê? A superlotação, característica típica desses locais, contribui para a disseminação veloz de moléstias infecciosas. Além disso, os moradores de favelas são uma população mais jovem e altamente móvel, o que contribui para a maior incidência de doenças em geral, e em especial as sexualmente transmissíveis. Tanto que a incidência de aids é superior nesses lugares.

    De acordo com os pesquisadores, na recente epidemia de ebola na África Ocidental, as condições de vida nas favelas daquele continente amplificaram a propagação da doença.

    Câncer, diabetes, hipertensão e afins

    Existem poucas informações sobre a incidência das chamadas doenças crônicas não transmissíveis entre essa população — o que já é um problema por si, uma vez que dificulta a tomada de atitudes públicas e denota uma falta de interesse em incrementar a saúde nas favelas.

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    Entretanto, como estamos falando de males muito ligados a um estilo de vida equilibrado, vale destacar que as mulheres e os homens que convivem nas periferias fazem mais atividade física e são menos obesos do que os que residem em outras áreas urbanas. Essa dose extra de movimentação talvez venha do trabalho ou mesmo da forma com a qual se transportam pela cidade.

    Leia também: O diabetes vai quebrar o Brasil

    Infelizmente, essa aparente boa notícia é neutralizada por outros fatores. As cozinhas dos barracos, geralmente internas e pouco ventiladas, culminam em uma concentração de gases tóxicos provenientes da queima de combustível durante o preparo dos alimentos. Aí sobe o risco de doenças respiratórias, como asma, darem as caras.

    Também não dá para esquecer que esse pessoal, muito por falta de informação e acesso a médicos e centros de diagnóstico, tende a demorar para detectar o aparecimento de uma doença crônica. Fora que sofre com uma enorme dificuldade para se ajustar a um tratamento prolongado por causa do orçamento curto — por mais que o governo brasileiro ofereça programas de subsídio a certos remédios (o Farmácia Popular é um deles).

    Desnutrição e subnutrição

    Os indivíduos que passam sua vida em favelas têm uma desvantagem nutricional. Não raro, dependem de vendedores ambulantes de alimentos e têm sua dieta baseada em comidas pré-cozidas de baixa qualidade, que obviamente não suprem as necessidades de vitaminas, minerais e outros nutrientes.

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    Cabe lembrar que não estamos falando puramente de satisfazer a quantidade de calorias necessárias para manter o corpo em movimento, mas de garantir o aporte de substâncias que afastam o risco de diversas enfermidades, a exemplo da anemia.

    E mais: as taxas de aleitamento materno são baixas nas favelas. Em outras palavras, as crianças começam a vida subnutridas. Isso ocorre, em parte, por causa das condições do mercado de trabalho, que obrigam as mães a viajar quilômetros e mais quilômetros todo dia enquanto deixam os filhos em casa ou em uma creche.

    Quando a filha de Carolina, Vera Eunice, nasceu, a autora conta que ficou alguns dias sem conseguir sair da cama. Depois, quando conseguiu se levantar, teve que correr em busca de dinheiro para alimentar a si e aos outros dois filhos. Claro que, em situações como essa, o tempo destinado à amamentação é exíguo.

    Leia também: O poder da amamentação

    “Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome”, relata Carolina, no dia 24 de julho de 1958. Esse desabafo nos leva a outro âmbito observado na pesquisa do The Lancet: o bem-estar psíquico.

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    Saúde mental

    Os autores estimam que distúrbios neuropsiquiátricos são a principal causa da perda de anos de vida por problemas de saúde, incapacidade ou morte precoce em todo o mundo. E a as condições de vida dos moradores de favela predispõem a esses distúrbios até por causa do estresse. Ainda assim, a principal constatação do levantamento sobre esse aspecto é do que há poucos dados sobre a saúde mental na periferia.

    Ao longo de Quarto de despejo, fica claro quanto a ansiedade e a melancolia estão presentes no cotidiano dos moradores. “O povo da rua percebe quando eu estou triste. Ganhei 36,00. Voltei. Não conversei com ninguém. Estou sem ação com a vida. Começo a achar a minha vida insípida e longa demais. Hoje o sol não saiu. O dia está triste igual minha alma. […] O que observo é que os que vivem aqui na favela não podem esperar coisa boa deste ambiente”, lamentou Carolina no dia 9 de julho de 1958.

    Acidentes e violência

    Em um estudo realizado na África, 22% das mortes em favelas decorreram de lesões — mais da metade são consequência de assaltos. Fora isso, uma revisão sobre a saúde da criança relatou que queimaduras são mais frequentes nas periferias do que em áreas urbanas ou rurais.

    Em seu diário, Carolina relata diversas ocasiões em que há brigas na favela em que habitava. “Ouvi vozes alteradas. Fui ver o que era, percebi que era briga. Vi o Zé Povinho correndo. Briga é um espetáculo que eles não perdem. Eu já estou tão habituada a ver brigas que já não impressiono”, escreveu em 27 de julho de 1958.

    Mudança de cenário

    O objetivo principal da pesquisa do The Lancet, segundo os autores, é contribuir para tornar as favelas mais visíveis aos que tomam decisões políticas e reforçar a necessidade de realizar outras investigações a respeito da saúde dessa população. “Geralmente, as pessoas vêm para as cidades buscando oportunidades melhores na vida. Mas nem sempre conseguem”, lamenta Waleska.

    De acordo com o Relatório Global das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, de 2003, aqui no Brasil as favelas são consequência do rápido processo de urbanização, que nunca seguiu políticas públicas de habitação, saneamento, educação e saúde. Mas também é resultado dos altos níveis de desigualdade social que caracterizam o desenvolvimento do país.

    Uma breve lição histórica

    A abolição da escravidão, em 1888, desempenhou um papel significativo no desenvolvimento das favelas, já que esvaziou as plantações de café e trouxe muitos migrantes para a cidade. O termo “favela” tem sua origem no primeiro assentamento de baixa renda que surgiu no centro da cidade do Rio de Janeiro, no início do século 20, batizado de Morro da Favela.

    Lá residiam principalmente ex-soldados que haviam lutado na Guerra dos Canudos e antigos escravos que não conseguiam se integrar à nova economia. “Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos.

    Os homens desempregados substituíram os corvos”, relatou Carolina em seu diário no dia 7 de julho de 1958.

    O esforço para modificar essa realidade deve ser coletivo. O livro de Carolina precisa deixar de ser atual — e isso depende de atenção e um maior número de estudos voltados para a vida e a saúde nas favelas. “Na verdade, uma das principais conclusões da pesquisa é que precisamos de muito mais dados para concluir algo. Por isso é necessária a criação de linhas de investigação específicas sobre o assunto”, argumenta Waleska.

    Os avanços na saúde, hoje, não podem mais se restringir aos afortunados que olham o morro de baixo para cima e são representados nas pesquisas científicas.

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