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“A pandemia mostrou que precisamos ensinar mais ciência aos médicos”

Médica do InCor que foi premiada no principal congresso de pneumologia do mundo divide aprendizados e desafios trazidos pelo coronavírus

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 2 jun 2022, 15h58 - Publicado em 2 jun 2022, 14h52
pneumologista premiada na ats
A pneumologista Juliana Ferreira atua na USP desde a sua graduação na Faculdade de Medicina, em 1998. (Arquivo Pessoal/Reprodução)
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Antes da pandemia, mal se falava em ventilação mecânica. Com a Covid-19, o tema se tornou crucial. Afinal, o momento e a maneira com que o paciente grave recebe oxigênio fazem toda a diferença nas suas chances de sobreviver à doença. 

A pneumologista e intensivista Juliana Ferreira, do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (InCor/USP) é uma especialista no assunto. Quando os primeiros casos do coronavírus foram detectados no país, ela e a instituição montaram uma operação de guerra para dar conta da demanda que – sabiam – seria alta. 

Parte deste trabalho envolveu também a criação de protocolos de atendimento que pudessem ser divididos com outros médicos do país. Da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Respiratória do InCor, saíram aprendizados acessados por mais de 300 mil profissionais da América Latina.

Recentemente, Juliana foi agraciada com o prêmio Philip Hopewell no último congresso da American Thoracic Society (ATS), principal entidade de pneumologia do mundo. O mérito reconhece médicos de países de baixa e média renda que se destacaram como clínicos e pesquisadores. 

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VEJA SAÚDE conversou com a especialista sobre sua atuação na pandemia, os desafios impostos pela Covid-19 e os aprendizados que o período deixa para o futuro. 

VEJA SAÚDE: Como a pandemia mudou o trabalho de vocês? 

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Juliana: Ela mexeu bastante com nossa rotina. O Hospital das Clínicas (HC) como um todo se mobilizou, instauramos um comitê de crise do qual fiz parte, e a pneumologia teve desde o início uma atuação muito forte. 

Foi uma operação bem coordenada, que tornou o HC referência em São Paulo. Normalmente, temos 94 leitos de UTI. Na pandemia, passamos a ter 300 leitos, 100% dedicados à Covid. A partir daí, criamos uma série de protocolos de atendimento que depois se tornaram cursos, que foram acessados mais de 300 mil vezes. 

Em linhas gerais, quais foram os aprendizados em relação ao uso de ventilação mecânica [suporte de oxigênio] no paciente com Covid? 

Primeiro, são pacientes com insuficiência respiratória muito grave. Eles têm um quadro chamado síndrome do desconforto respiratório agudo, no qual a oxigenação fica baixa abruptamente e só é possível resolver com o suporte ventilatório. Já conhecíamos isso, mas a Covid tem particularidades. 

Então houve muita pesquisa, muita evolução para otimizar intervenções como a posição de prona [deitar o paciente de bruços para facilitar a respiração] e a terapia de Oxigenação por Membrana Extracorpórea (ECMO) [máquina conectada no paciente que realiza o trabalho dos pulmões]

Além disso, precisávamos capacitar profissionais em ventilação, porque há uma falta de capacitação generalizada no assunto. Então aumentou o conhecimento de médicos intensivistas e de outras disciplinas sobre como cuidar de pacientes gravíssimos. 

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Que diferença faz uma ventilação mecânica bem feita? 

Ela é feita em várias situações em que o paciente está em estado grave e precisa de sedação. É uma ferramenta muito utilizada na UTI, que salva vidas, mas pode ter complicações e riscos importantes. 

Fazer de maneira adequada melhora a chance de recuperação daquele paciente. Para as pessoas com insuficiência respiratória, por exemplo, a prona melhora a sobrevivência, assim como a ventilação protetora, que evita volumes altos de oxigênio para não lesionar o pulmão. 

Fora a posição da cabeceira, o suporte nutricional… Na UTI, aprendemos que várias pequenas boas práticas e cuidados ajudam a salvar vidas. 

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O que destacaria como aspectos mais desafiadores do tratamento da Covid? 

Cuidar de pacientes gravíssimos num volume tão alto, para o qual não estávamos preparados, foi desafiador. E cuidar deles sem a presença das famílias, esse foi outro aspecto bastante duro. Era difícil ver uma porcentagem tão significativa de pacientes já chegando em estado bastante crítico e morrendo. 

Além disso, eles têm uma insuficiência respiratória mais longa, com repercussões neurológicas e uma sedação mais difícil do que o habitual. 

As UTIs brasileiras estavam preparadas para a pandemia? 

Ninguém estava preparado para isso. Mesmo no HC, que tem comitê de crise e estratégias para surtos, estávamos um pouco desprevenidos. Ainda assim, vejo o que vivi aqui como uma situação privilegiada do ponto de vista de recursos e mão de obra. Havia um clima grande de união, e pensei: “tudo o que estudei na vida me preparou para esse momento”. 

Isso também foi verdade em outros locais do Brasil, mas foi triste ver colegas em situações onde faltavam recursos, como em Manaus, tendo que decidir quem ia receber oxigênio ou não. Dói saber que alguém teve que fazer essa escolha e outra pessoa não recebeu o que precisava. 

A pandemia deve servir de lição para que isso não se repita. Precisamos estar preparados para preservar o máximo de vida e de dignidade possíveis. E isso serve para outras áreas da saúde, como a questão das enchentes. 

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É duro ver tanta gente morrendo no Recife depois de uma tragédia tão recente no Rio de Janeiro [as enchentes de Petrópolis em fevereiro, que vitimaram ao menos 171 pessoas]. Isso mostra que ou estamos despreparados, ou não nos importamos com uma parcela da população. 

Como está a situação agora? Ainda vemos muitos casos graves de Covid-19? 

A despeito de todos os boicotes, a vacinação aconteceu e mudou o perfil da pandemia. A variante Ômicron teve um impacto diferente, mas é diferente também porque estamos vacinados.

Para quem se recusou a tomar a vacina, a Ômicron segue sendo perigosa, assim como para os pacientes imunocomprometidos, que respondem pior ao imunizante. 

Com exceção dos não-vacinados, o perfil da UTI agora é diferente. Portadores de câncer, por exemplo, pessoas que já estavam lutando para combater outras doenças graves por si só, estão adoecendo severamente. Por isso, vejo com ressalvas essa questão de deixar Sars-Cov-2 circular na comunidade. 

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Enquanto não estivermos todos seguros, ninguém estará seguro. Jovens vacinados, com a resposta imune adequada, podem pensar que não há problema em se infectar porque dificilmente terão complicações. 

Isso até é verdade, mas, enquanto o vírus circula, tanto os mais vulneráveis podem ser atingidos quanto há a possibilidade de surgirem novas variantes, com efeitos imprevisíveis, inclusive para os saudáveis. 

Agora, sobre educação médica. Você também trabalha com isso, e esse tem sido um desafio no Brasil, com médicos propagando desinformação sobre medicamentos e vacinas, sob anuência do próprio CFM. Quais são os caminhos para resolver esse problema? 

Esse é um aspecto triste da pandemia. Ou seja, o quanto a desinformação acabou sendo responsável por piores desfechos. O Brasil sofreu bastante com isso, mas também vi o oposto: a jovem geração vendo o quanto a informação faz diferença pra salvar vidas. 

Informação e formação são o caminho daqui para a frente. Precisamos ensinar desde cedo nas faculdades de medicina e até antes, no ensino médio, a importância da ciência e o que ela pode trazer de bom. 

+ Leia também: Vacinação infantil contra a Covid-19: a epidemia da desinformação

O método científico até é visto na faculdade, mas isso pode melhorar, com estratégias para uniformizar currículos e formação em leitura crítica de artigos. Uma vez que um profissional aprende a pesquisar a literatura e a reconhecer a qualidade de um estudo, não esquece mais isso. A pandemia mostrou que precisamos ensinar mais ciência aos médicos.

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