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A jornada pela primeira vacina contra o coronavírus no Brasil

Entrevistamos a médica brasileira que trouxe os estudos com uma candidata à vacina para o país. Entenda os bastidores e as expectativas em jogo

Por Diogo Sponchiato
Atualizado em 14 jul 2020, 17h56 - Publicado em 10 jun 2020, 13h41
vacina coronavirus oxford
Começam os testes com uma vacina contra o coronavírus no Brasil. (Foto: Eduardo Svezia/SAÚDE é Vital)
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O Brasil está na rota daquela que pode ser a primeira vacina contra o novo coronavírus. E uma das responsáveis por isso é Sue Ann Costa Clemens, médica e pesquisadora especialista em doenças infecciosas e diretora do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena, na Itália.

Instalada no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), no Rio de Janeiro, ela coordena o braço brasileiro do estudo internacional que avaliará em 50 mil pessoas pelo mundo um dos imunizantes em estágio de desenvolvimento mais avançado para ajudar a deter a pandemia de Covid-19. A vacina, criada na Universidade de Oxford, na Inglaterra, será testada em 5 mil brasileiros e se espera que resultados preliminares possam vir a público em outubro. 

Nesta conversa exclusiva com VEJA SAÚDE, Sue Ann relata a jornada para provar a segurança e a eficácia do produto e o papel do Brasil na história que está sendo escrita. “Tenho confiança nessa vacina”, diz. E reflete sobre outros aspectos cruciais para conter esta e uma eventual próxima pandemia. Segundo ela, também precisamos de uma “vacina mental”.

VEJA SAÚDE: Doutora, pode nos explicar a tecnologia por trás dessa vacina testada no Brasil?

Sue Ann Costa Clemens: Ela utiliza uma tecnologia em que um vírus que não é replicante nem infeccioso serve de carreador para o coronavírus modificado para não provocar doença, mais especificamente para a proteína S do coronavírus [proteína que permite ao patógeno se conectar a uma célula humana e infectá-la]. É uma plataforma conhecida como vetor viral recombinante e vem sendo usada por diversas farmacêuticas e por Oxford para combater surtos virais, como aconteceu com o ebola e a Mers [síndrome respiratória do Oriente Médio, causada por outro tipo de coronavírus]. Nessa nova vacina, empregamos um adenovírus [vírus que originalmente causa resfriado] como vetor para a proteína S do coronavírus.

Quer dizer que já havia uma experiência acumulada com esse modelo de vacina?

Isso foi um diferencial em relação a outras vacinas candidatas em desenvolvimento, porque permitiu que se chegasse a uma plataforma e a uma vacina para o novo coronavírus mais rápido. Com o estudo em epidemias como ebola e Mers, já tínhamos dados e experiência com a imunogenicidade [capacidade de a vacina gerar uma resposta do nosso sistema de defesa] e a reatogenicidade [potencial de gerar efeitos colaterais] de vacinas com a mesma tecnologia em mais de 7 mil voluntários.

Isso possibilitou um desenvolvimento mais rápido agora e a começar os estudos com mais segurança, embora a gente não tenha pulado nenhuma fase de pesquisa. Tivemos a etapa pré-clínica [experimentos com células e animais], as fases 1 e 2 do estudo clínico [em humanos] e entramos no Brasil com a fase 3 [etapa em que se avalia a eficácia em um grande número de voluntários].

E como foi a jornada até aqui?

Fazendo um resumo do que foi visto antes e se vê agora, essa vacina tem uma reatogenicidade normal e esperada e já foi comprovado que promove uma resposta imune, não só com a produção de anticorpos mas com a atuação de outras células de defesa. Isso foi revisado por agências regulatórias e tivemos a permissão para começar a primeira fase de pesquisa em adultos saudáveis.

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O plano de desenvolvimento global da vacina contempla diferentes fases. Na pandemia, alguns estudos e protocolos são combinados para sermos mais ágeis e conseguirmos aprovar um produto eficaz mais rapidamente. O que foi feito lá fora foi a fase 1 com o início da 2 e agora realizamos a etapa entre a 2 e a 3. Começamos a analisar a resposta imune dos voluntários vacinados no fim de abril há duas, três semanas. Ou seja, não tem muito tempo. Em geral, dosamos e verificamos a resposta imune após um mês, depois de três meses e assim sucessivamente.

A resposta imune que a gente viu até aqui foi muito boa. Os resultados da fase 1, que envolveu 1 100 voluntários, nos permitiram ter a segurança e uma noção dos efeitos para passarmos adiante. Os estudos de fase 2 e 3 começaram no Reino Unido com 10 660 voluntários e o plano global para a fase 3 inclui não só o Reino Unido, mas o Brasil com 5 mil voluntários, dois países da África com mais ou menos 3 mil, um da Ásia com 1 a 2 mil e os Estados Unidos com 30 mil, perfazendo um total de 50 mil voluntários.

pesquisadora vacina coronavírus
A pesquisadora brasileira Sue Ann Costa Clemens comanda o estudo com a vacina de Oxford no Brasil. (Foto: Divulgação/SAÚDE é Vital)

Como foi trazer essa pesquisa para o Brasil? Foi um processo normal ou atípico?

Nessa pandemia acho que não tem nada de normal. Faço pesquisa há anos e tenho larga experiência em estudos com vacinas que envolvem alto recrutamento de pessoas. Fui responsável, por exemplo, por um estudo na América Latina que testou a vacina para rotavírus [patógeno que causa diarreia e problemas no aparelho digestivo] em 60 mil voluntários em seis meses. Eu e o doutor Andrew Pollard [chefe do grupo de pesquisa em vacina de Oxford] nos conhecemos de diferentes trabalhos e ele dá aula no meu curso de mestrado na Universidade de Siena. Sabendo que sou brasileira e estava por aqui, ele me ligou numa bela quinta-feira e me falou que precisava identificar centros para o estudo no Brasil e gostaria que eu fosse a principal investigadora.

Então foi uma honra, me sinto orgulhosa, mas é um grande desafio. Pude contar com empresários brasileiros para financiar o projeto, como a Fundação Lemann e o IDOR, que entrou não só com financiamento mas também com toda a infraestrutura da rede e do instituto, e com a Unifesp, de onde sou pesquisadora e fui doutoranda e da qual nunca me desliguei. Conseguimos, assim, uma boa conexão com centros de saúde e eles mostram que o Brasil está preparado cientificamente e do ponto de vista de infraestrutura para receber um estudo dessa magnitude.

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Há alguma particularidade nesse braço brasileiro da pesquisa com a vacina?

O desafio para os centros é recrutar um alto volume de participantes por dia, inclusive para não perdermos essa ascendência da curva da doença, o fato de a taxa de contágio ainda estar alta por aqui. Dessa forma podemos provar a eficácia da vacina mais rapidamente. Quando a taxa de contágio cai e o platô já não está tão elevado, pode demorar mais tempo.

Qual é o perfil dos brasileiros que participarão dos testes?

Vamos investigar o efeito da vacina em adultos saudáveis de 18 a 55 anos que sejam soronegativos, isto é, que comprovadamente não tiveram o vírus, mas se encontram em maior exposição a ele. No plano de desenvolvimento global, temos subgrupos que contemplam testes em pessoas entre 56 e 69 anos e idosos acima de 70, crianças e, na África e na Ásia, pessoas com comorbidades conhecidas e imunossupressão, como pacientes com HIV.

Qual é a previsão para os primeiros resultados?

Nós vamos vacinar os voluntários e eles vão voltar à vida normal, continuando expostos ao risco de pegar o vírus. Aí vamos ver quem contrai ou não a Covid. Assim é que comprovamos se o vacinado foi protegido. O cronograma de resultados é complexo porque depende do recrutamento e da análise dos casos. Se o recrutamento correr bem, a gente espera que lá pra outubro tenha uma ideia de como está funcionando a vacina.

Mas, para o registro global, não contamos só com dados do Brasil, dependemos também dos outros países para montar um dossiê com uma análise robusta e, ainda este ano, submetê-lo à agência regulatória do Reino Unido, que é o país de origem da vacina e onde ela começaria a ser administrada. A partir daí teríamos o registro em outros países em caráter emergencial.

Ainda há muita discussão sobre quão duradoura é a imunidade ao coronavírus. Já dá pra antever se essa vacina terá um efeito prolongado ou precisará ser tomada de tempos em tempos, como na gripe?

É bastante cedo ainda. Os primeiros voluntários foram vacinados no fim de abril. Precisamos segui-los por mais tempo para saber o que chamamos de persistência de anticorpos, ou seja, quanto eles vão durar no organismo. Por isso os estudos têm uma duração de 12 meses. Ao final, vamos saber se a resposta imune dura um ano, como ela se comportou, se vai precisar ou não de uma dose de reforço da vacina e, em alguns subgrupos, vamos continuar o acompanhamento por mais tempo.

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Com a vacina aprovada, como ficaria a produção em larga escala?

A entrada da farmacêutica AstraZeneca é crucial nessa parceria para aumentar a produção da vacina e levá-la à população mundial. O que sabemos é que há uma busca por parcerias com governos do mundo inteiro para elevar a capacidade de produção local.

Na corrida pelas vacinas, a de Oxford está na dianteira?

Realmente a vacina de Oxford já entrou em fase 3 e há uma chinesa entrando agora também. Tudo depende de como vão ser conduzidos esses estudos e as curvas epidemiológicas da doença vão se comportar. Você começar primeiro não quer dizer que vai comprovar eficácia primeiro. Eu tenho confiança nessa vacina, mas tem outras que vêm logo atrás.

Estou no comitê científico de uma outra vacina chinesa e uma alemã que utilizam plataformas diferentes, são bastante promissoras e devem entrar em fase 3 em setembro. Essa busca ajuda muito o mundo porque a gente não sabe como esse vírus vai se comportar. Basta lembrar que, para o influenza, da gripe, a gente tem uma vacina a cada ano. As diferentes plataformas nos trazem uma segurança maior para o enfrentamento desse novo vírus.

A vacina é o que fará a maior diferença para vencer a pandemia?

Sim, pelo que vimos até hoje, não só agora, mas com epidemias que vivenciamos há pouco tempo, como a de gripe, a de ebola etc, a vacina é realmente importante. Principalmente nessa pandemia em que a taxa de contágio do vírus é tão alta e que medidas de saúde pública como as que vêm sendo tomadas pelos governos não têm conseguido contê-lo a tempo de evitar um colapso no sistema de saúde, mesmo em potências como Estados Unidos e países da Europa. E por que isso acontece? Porque a população também teria que ser abordada e preparada para saber como se comportar numa situação dessas e ter um maior entendimento da sua gravidade.

Várias entidades internacionais e governos estão voltados ao combate a pandemias, mas eles estão muito direcionados à parte técnica, ao desenvolvimento e à produção de vacinas, e as medidas de saúde pública acabam não sendo tão trabalhadas. A conexão com a OMS e as outras instituições é importante para esclarecer a população sobre os diferentes estágios de risco na pandemia e como se comportar nesses estágios. Até porque a gente sabe que mudança de hábito e comportamento não é uma coisa fácil. Vimos agora, entre populações que foram dizimadas, como nos Estados Unidos e na Itália, as pessoas indo à praia ou ao parque e não respeitando todas as medidas de proteção no primeiro relaxamento.

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Essa é uma lição importante que ficou. Teremos que trabalhar muito mais daqui pra frente a prevenção e a conscientização da população. É como se fosse uma vacina mental. Assim, quando acontecer de novo, as próprias pessoas já saberão melhor como se proteger. Elas não precisariam ser obrigadas a ficar mais em casa, fazer higienização e usar máscara… Elas mesmas saberiam como agir, o que poderia poupar muitas mortes como vimos agora.

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