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O perigo no uso (e abuso) das telas pelas crianças

Especialistas alertam para os prejuízos físicos, psíquicos e sociais que celulares, computadores, videogames e afins podem causar. Hora de rever limites

Por Daniella Grinbergas
21 jan 2022, 14h26
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  • Não é de hoje que pediatras, psicólogos e outros profissionais defendem mais cuidado e moderação com os meios eletrônicos na infância. Nos últimos tempos, porém, não só rolou uma avalanche de evidências científicas sobre as repercussões negativas desse estilo de vida vidrado nas telas como cresceu a preocupação com o uso cada vez mais precoce e intenso de computadores, smartphones e tablets.

    E, claro, a Covid-19 bagunçou tudo: com o isolamento social, os limites de tempo na frente das telinhas e telonas caíram por terra. Falo por experiência própria. Tenho gêmeos de 5 anos e ficamos meses dentro de um apartamento com opções de espaço e atividades restritas.

    O desafio era equilibrar uma rotina sem brincadeiras ao ar livre, com aulas online e os nossos próprios trabalhos e afazeres domésticos. Que atirem a primeira pedra os pais que, em condições parecidas, não liberaram horas a mais de TV ou celular.

    No fim das contas, quem se deu melhor foram as famílias que conseguiram flexibilizar o acesso à tecnologia sem deixar de lado a interação, o afeto e o mundo fora das telas, retomando as rédeas da situação com a reabertura das escolas e dos espaços de lazer. Mas é inegável que a pandemia atropelou etapas e antecipou tendências.

    “Desde a entrada da internet discada no Brasil, estamos acompanhando a evolução do uso da tecnologia pelas pessoas. E o que esperávamos ver daqui a cinco ou dez anos aconteceu da noite para o dia”, observa Andrea Jotta, pesquisadora do Laboratório de Psicologia em Tecnologia, Informação e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

    Tudo (ou quase tudo) migrou para o universo digital. E, para o bem e para o mal, nos tornamos ainda mais dependentes das telas, especialmente a nova geração.

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    Na visão de Andrea, estávamos a caminho de uma educação digital, aprendendo a utilizar a internet e outros recursos de forma balanceada. Mas a Covid-19 desestruturou essa rota e criou novas dificuldades para controlar o tempo conectado e os conteúdos à disposição dos mais novos.

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    No entanto, evitar os excessos por trás de danos ao desenvolvimento físico, emocional e social continua sendo um papel dos pais ou responsáveis.

    “Crianças não estão no mercado de trabalho nem dependem socialmente da internet. Vai do educador presente fazer valer essa distinção e deixá-la off, incentivando também outras atividades”, recomenda a psicóloga da PUC-SP.

    É nítido que a tecnologia já foi adotada como ferramenta pedagógica nas escolas e isso não deve voltar atrás, mas a grande questão (e preocupação) envolve o abuso para fins recreativos. Crianças e adolescentes estão cada vez mais confinados ao entretenimento digital.

    “O problema se dá quando esse comportamento concorre com outras atividades, se torna exagerado e ultrapassa os limites da nocividade”, pontua o psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

    Para guiar os pais, entidades médicas mundo afora publicaram diretrizes a respeito. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) orienta um limite de acordo com a idade e as etapas do desenvolvimento infantil.

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    + Leia também: Família digital: o abuso de telas cobra um preço alto de todos

    Para começar, nada de telas antes dos 2 anos. Evelyn Eisenstein, pediatra que coordena o Grupo de Trabalho de Saúde na Era Digital da SBP, explica que, nessa fase, a exposição a telas pode atrapalhar e atrasar processos mentais e cognitivos como a aquisição da linguagem.

    Nada substitui o contato humano cara a cara. De 2 a 5 anos, o limite para a SBP é de uma hora por dia, sempre sob supervisão. Isso aumenta para até duas horas dos 6 aos 10, e, daí aos 18, chega a três horas diárias.

    O que entra na conta

    Os meios e recursos mais utilizados que fazem as crianças extrapolarem limites saudáveis:

    Há limites e limites

    Achou os limites da SBP rígidos demais considerando estes novos tempos? Há quem defenda medidas ainda mais radicais. O neurocientista Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, aconselha evitar as telas até os 6 anos de idade.

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    Em seu livro A Fábrica de Cretinos Digitais (clique aqui para comprar), ele expõe dados e argumentos que impressionam — todos baseados em sua experiência e em estudos que comprovam os perigos de tanta exposição a telas na infância.

    Em alguns lares, tem bebê assistindo a cerca de 50 minutos de desenhos animados por dia. Inofensivo? “Isso representa 8% da vigília dele, 15% de seu tempo livre, que deveria ser destinado a observação ativa do mundo, brincadeiras espontâneas, exploração motora e outras atividades. Em 24 meses de vida, são 600 horas gastas”, detalha Desmurget.

    A conta é ainda mais alarmante em relação às crianças mais velhas. Pesquisas feitas em países ocidentais apontam que, entre os 2 e os 8 anos, elas dedicam, em média, o equivalente a 1/5 do seu dia às telas. Entre 8 e 12 anos de idade, o tempo de uso recreativo aumenta para 1/3 do período de vigília.

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    E, em meio aos adolescentes (13 a 18 anos), o consumo diário beira os 45%, quase metade do tempo em que ficam acordados. Fazendo os cálculos, eles chegam a acumular, em média, 2 689 horas, ou 112 dias de um ano, grudados nas telas.

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    Em outubro de 2021, o Lenstore Vision Hub, plataforma britânica da marca de lentes de contato Acuvue, publicou uma análise de quão dependentes tecnológicas se encontram as crianças de várias nações.

    Após revisar e cruzar índices como horas de internet por dia, grau de comportamento sedentário e prevalência de obesidade infantil, foi possível elaborar um ranking por país que dá uma noção de quanto os mais novos vivem frente às telas e os reflexos disso em sua saúde.

    O primeiro lugar da lista ficou com os Emirados Árabes Unidos, seguidos pelos Estados Unidos e, logo em terceiro, vem o Brasil, que lidera especificamente o quesito “tempo diário de internet” (mais de dez horas!).

    O fato é que crianças e jovens nem sempre têm limites mesmo. “Até certa idade, o ser humano não tem formada uma região do cérebro que dá aquele aviso de que é preciso parar. Essa zona só estará madura entre 20 e 24 anos. Então até lá é preciso que os adultos responsáveis os ensinem e supervisionem”, esclarece Andrea.

    Só que a indústria de entretenimento eletrônico e as redes sociais não facilitam as coisas para os pais. A maioria dos programas e dos dispositivos hoje é extremamente intuitiva e envolvente. É fácil aprender a mexer e passar horas e horas conectado ali. Por isso, alguns especialistas defendem a introdução mais tardia das telas.

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    + Leia também: A internet está tóxica, e isso pode mexer com nossa saúde mental

    Desmurget afirma que a exposição precoce pode fazer com que o pequeno se desvie de seus aprendizados essenciais, fechando janelas cerebrais que não se abrirão depois para capacidades como concentração, reflexão e interação social.

    “As telas podem privar as crianças de estímulos e experiências essenciais dificílimos de serem recuperados mais tarde”, escreve no livro.

    O neurocientista frisa que, salvo ferramentas educativas ou desenvolvidas para ajudar em tratamentos específicos, as pesquisas não comprovam que as habilidades adquiridas no meio virtual se estendam para a vida real.

    Ele exemplifica: um hábil jogador que adquire uma incrível noção espacial dentro de um game não será, em função disso, alguém apto a se locomover melhor numa cidade ou a ter um bom desempenho em atividades do gênero fora das telas.

    Desmurget aproveita o ensejo para refutar o termo “nativos digitais”, a geração que seria hipercompetente com a tecnologia. Assim como qualquer adulto, as crianças de hoje precisam aprender a navegar pelo mundo virtual, e, sem instrução, não vão dominar conceitos e práticas básicas na informática.

    Mas essa torrente de estímulos não estaria mudando a anatomia do cérebro dos jovens superconectados? Pode até ser, mas o cientista francês faz questão de avisar: “Todo estado persistente e/ou toda atividade repetitiva modificam a arquitetura cerebral. Certas zonas se tornam mais espessas, outras mais delgadas; algumas vias de conexão se desenvolvem, outras se estreitam. Isso é próprio da plasticidade cerebral”.

    Ou seja, pode haver ganhos mas também perdas nesse processo, e, o principal, esse fenômeno não tem ligação unívoca com os desempenhos cognitivos.

    + Leia também: Fake news colocam a saúde em risco

    Nesse sentido, Desmurget explica que, em muitos casos, um córtex (a camada superficial do cérebro) mais fino é funcionalmente mais eficiente. “O quociente de inteligência (QI) do adolescente e do jovem adulto é desenvolvido em associação a um estreitamento progressivo do córtex em inúmeras zonas, especialmente as pré-frontais, que os estudos relativos à influência dos videogames descreveram como sendo mais espessas”, relata.

    Sob esse ponto de vista, os games não tornam as crianças mais espertas — estaria mais para o oposto. Convém ressaltar que os prejuízos se acentuam à medida que aumentam as horas de tela.

    E englobam, além dos jogos eletrônicos, redes sociais, chats, vídeos… Há efeitos físicos (ganho de peso), psíquicos (ansiedade) e intelectuais (mau desempenho escolar). Tudo depende da idade e da exposição. E o preço que a saúde paga pode ser bem alto.

    Os efeitos do excesso

    Quando a coisa sai dos trilhos, há impactos no desenvolvimento físico, mental e intelectual:

    + Sedentarismo: trocar as atividades físicas e ao ar livre por horas e horas de TV, celular ou computador leva ao comportamento sedentário e, por tabela, ao ganho de peso.

    + Miopia: o Conselho Brasileiro de Oftalmologia divulgou uma pesquisa nacional que mostra que sete em cada dez médicos registraram aumento nos casos em pessoas de até 19 anos.

    + Cognição: o bombardeio tecnológico pode respingar na forma de problemas de atenção, concentração, memória, aprendizado e, na esteira disso tudo, abalos no desempenho escolar.

    + Emoções: a liberação desordenada de hormônios e neurotransmissores é capaz de gerar quadros de ansiedade, irritabilidade, depressão e dependência. É muita coisa pra cabeça!

    + Solidão: a comunicação virtual não substitui a interação pessoal. Assim, indivíduos superconectados podem viver isolados da família e de amigos e reféns de problemas psíquicos.

    + Sono: as telas atrasam o horário de ir para a cama e encurtam a duração do descanso. Além disso, a exposição à luz artificial atrapalha a liberação do hormônio do sono.

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    Dieta tecnológica

    Trabalhos científicos apresentados por Desmurget constataram que crianças muito expostas às telas encaram mais problemas de aprendizagem, ficam com níveis mais altos de cortisol — o hormônio do estresse, que desregula o sono e o apetite — e se tornam mais suscetíveis ao vício. Evelyn acrescenta, ainda, outros transtornos mentais, distúrbios visuais e auditivos e os danos do sedentarismo.

    Isso sem contar os perigos relacionados aos conteúdos em si: violência, pornografia, cyberbullying etc. Todos esses perrengues estão começando a aparecer nos consultórios médicos.

    A psiquiatra Shimi Kang, professora da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, conta que há 20 anos se dedica a investigar o elo entre saúde, felicidade e motivação entre as crianças. Mas, na última década, teve de adicionar um quarto elemento que influencia a formação dos jovens: a vida entre telas.

    No livro Tecnologia na Infância (clique aqui para comprar), ela afirma que a geração Z, os nascidos do final dos anos 1990 a 2010, está menos confiante, menos propensa a assumir riscos e mais vulnerável à depressão e ao suicídio.

    E tudo isso está correlacionado com a expansão dos smartphones.“Meu diagnóstico é urgente: estamos criando uma geração à beira da mais grave crise de saúde mental registrada na história”, sentencia.

    Então como evitar esse game over em um mundo de telas onipresentes? Não é preciso ser radical. A própria Shimi não é contra o uso da tecnologia. Mas reforça a necessidade de buscar e extrair apenas o melhor dela.

    Como? Por meio de uma educação digital. A ideia é ensinar às crianças a noção de que, a exemplo dos alimentos que ingerimos, o consumo eletrônico pode ser benéfico ou tóxico para a saúde. Depende da quantidade e da qualidade.

    Não à toa, a psiquiatra estipula no livro uma dieta tecnológica saudável. Para viabilizá-la, os especialistas dizem que vale comprar uma briga em casa: nada de TV, computador e videogame no quarto.

    “Uma vez ali dentro, abrimos as portas para um mundo onde não conseguiremos ter controle. E, sem isso, a criança não só vai acessar o que bem entender na hora que quiser como pode se afastar da própria família”, avisa Polanczyk.

    + Leia também: Bebês devem ser estimulados a segurar objetos desde o nascimento, diz estudo

    Mas, antes de sair por aí ditando regras para os filhos, netos ou sobrinhos, precisamos fazer uma autoanálise. Porque nós somos exemplos para eles.

    Numa sociedade que tem valorizado tocar mil coisas ao mesmo tempo, não desconectamos, trocamos mensagens e e-mails o dia inteiro, vivemos em aplicativos… Enfim, não saímos das telas. E, se pararmos para pensar, vamos perceber que, tantas e tantas vezes, isso acontece na frente dos pequenos.

    Chegamos a responder às perguntas deles sem nem sequer tirar os olhos do celular. É um péssimo espelho. Assim, não basta impor normas e restrições quando nem a gente sabe ou quer aplicá-las.

    “Se cada um estiver imerso no seu celular a todo momento, será impossível convencer uma criança que isso não é bom para ela”, resume Andrea.

    “Vivemos um ponto de inflexão. Não sabemos quais rumos a tecnologia vai tomar, mas sabemos que isso não tem volta. Só fazendo um uso equilibrado e apostando no protagonismo humano tornaremos o convívio com o digital mais saudável”, diz a psicóloga da PUC-SP.

    Deslogar também é preciso, e pede a cooperação da família toda. Afinal, precisamos estar mais conectados com as pessoas — de preferência, olho no olho.

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    Perguntas e respostas

    Dúvidas e controvérsias frequentes elucidadas de acordo com estudos, entidades e especialistas:

    A partir de que idade dá pra liberar as telas?

    A SBP recomenda zero exposição a crianças de até 2 anos. Mas alguns pesquisadores, como o neurocientista francês Michel Desmurget, são mais radicais e postulam que as telas devem ser evitadas a todo custo até os 6 anos de idade.

    Quais os limites por faixa etária?

    A SBP recomenda até uma hora por dia a pequenos de 2 a 5 anos (com supervisão); até duas horas entre 6 e 10 anos de idade; e até três horas para quem tem de 11 a 18 anos, incluindo tudo nesse pacote (TV, computador, videogame…).

    Como fica o uso para fins escolares?

    Depois da pandemia, aulas e recursos online entraram de vez no dia a dia das escolas. Cabe à instituição dosar e aplicar as ferramentas certas, assim como capacitar os professores. Aos pais fica a missão de educar sobre um uso saudável em casa.

    Pode colocar TV ou computador no quarto?

    Experts são unânimes ao contraindicar isso. Crianças não têm um autocontrole estabelecido, podendo passar dos limites de tempo e tipo de conteúdo. Sem contar a perda da convivência familiar e os impactos na quantidade e na qualidade do sono.

    Quando é melhor evitar as telas?

    Pelo menos uma hora antes de ir para a cama — a luz das telas inibe a produção do hormônio do sono — e, para alguns especialistas, antes de ir à escola. Além disso, não permita o uso durante as refeições, as aulas e as interações com colegas e familiares.

    Dá para assistir ou jogar com a família?

    Sim, e esse é o melhor caminho, desde que o tempo e o conteúdo sejam adequados. A ideia é utilizar como um passatempo após os deveres da escola, sobretudo se houver interação entre as pessoas. Assim, até o videogame entre amigos está liberado.

    O ensino a distância é igual ao presencial?

    Numa situação de pandemia fora de controle, não tem muita opção. Mas estudiosos indicam que a educação remota não substitui a presencial. Desmurget diz que, mesmo na França, onde houve investimento nisso, o desempenho escolar com o isolamento foi um fracasso.

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