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Medicina

AS MUITAS DORES DA PANDEMIA

Trabalho em casa, sedentarismo e estresse dos dias atuais têm um desdobramento direto e doloroso em músculos, articulações e outras estruturas do corpo

por André Biernath Atualizado em 20 jul 2020, 14h30 - Publicado em
17 jul 2020
15h00

Aumento das queixas

A artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954) teve uma vida bastante trágica. Aos 6 anos, foi diagnosticada com poliomielite, doença infecciosa que deixou uma sequela em seu pé direito. Aos 18, voltava para casa quando o ônibus em que estava se envolveu num grave acidente com um trem. Uma das ferragens do veículo perfurou suas costas, dilacerou a pelve e exigiu uma série de cirurgias reparadoras. Por causa dessas limitações, a pintora precisou produzir muitos de seus quadros deitada na cama, utilizando um espelho no teto para ter noções de perspectiva. Mas sua história sofrida só ficou completa mesmo quando, aos 21 anos, ela conheceu o muralista Diego Rivera (1886-1957), por quem se apaixonou e com quem teve um relacionamento conflituoso, marcado por brigas e traições.

Não é exagero afirmar que, ao longo das décadas, Frida vivenciou em algum grau todos os incômodos que um ser humano é capaz de suportar. Não à toa, as aflições físicas e emocionais são tema recorrente de suas obras mais famosas. Em A Coluna Quebrada, por exemplo, ela substitui suas próprias vértebras por um pilar greco-romano com várias rachaduras, enquanto seu corpo está cheio de pregos cravados na pele. “Minha pintura traz consigo a mensagem da dor”, disse certa vez a artista.

De várias maneiras, o mundo está vivendo hoje algo que aparece com angústia e pulsação nas telas de Frida: a pandemia de Covid-19, que já causou mais de meio milhão de mortes, teve uma série de desdobramentos na rotina, na economia e na nossa relação com os outros. Fatores como trabalhar em casa, lidar com tarefas simultaneamente e parar de fazer exercícios tornaram-se comuns ao longo dos últimos meses e, claro, cobram o preço em diversas instâncias da saúde. Um primeiro sinal dessa bagunça toda pode ser sentido em músculos, tendões e articulações. É a dor, um grito do corpo de que há algo errado.

Há uma série de indicativos de que as pessoas estão experimentando mais dores em razão de todas as mudanças deflagradas pelo coronavírus. Uma primeira pista disso vem das farmácias: ainda em março de 2020, a compra de analgésicos isentos de prescrição teve um aumento de 62% no Brasil em comparação com o mesmo período do ano passado. Já em maio, foi a vez de as pomadas e os emplastros subirem 10%. Os números fazem parte dos relatórios da Iqvia, consultoria que faz a coleta de estatísticas do mercado de saúde e bem-estar.

Outra evidência desse fenômeno chega da internet: um levantamento realizado pelo Google a pedido de VEJA SAÚDE revela que nunca os brasileiros buscaram tanto por dor quanto em maio de 2020. A procura por “dor de cabeça” se elevou em 33% entre 15 de março e 20 de junho na comparação com as mesmas datas de 2019. Já “dor nas costas” passou por um crescimento de 22%. Embora não haja números precisos e oficiais, as queixas também decolaram nos contatos (presenciais ou a distância) com os médicos.

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E pode reparar em seus próprios hábitos: quando você sente pontadas em alguma parte do corpo, a tendência num primeiro momento é tomar um comprimido ou jogar no Google o que aquele sintoma pode significar. Só apelamos para a ajuda especializada numa clínica ou no pronto-socorro quando o incômodo não melhora ou piora de vez. Essa tendência se fortalece ainda mais num cenário de pandemia, em que a recomendação é ficar em casa e só sair à rua para serviços essenciais e emergências.

Os próprios especialistas em tratar essas chateações sentiram falta dos pacientes a partir de março, quando a coisa começou a apertar no Brasil. “No início, a gente até brincou: será que todos os indivíduos com dores nas costas sararam de uma só vez?”, relata a anestesiologista Fabíola Peixoto Minson, coordenadora da pós-graduação em dor do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Para evitar qualquer risco de infecção, muitos preferiram empurrar o problema com a barriga e ficar sem a avaliação aprofundada de um profissional. “Várias pessoas mascararam os sintomas com os analgésicos de venda livre, mas a tendência é que agora elas busquem os serviços de saúde novamente, muitas vezes com um quadro agravado”, vislumbra a médica.

Para tornar o enredo mais complicado, a dor de cabeça ou pelo corpo também pode ser sintoma de Covid-19. Mas como diferenciá-la de algo causado pela má postura ou pelo sedentarismo? “No caso da infecção por coronavírus, o incômodo costuma vir junto de outras manifestações, como tosse e febre”, responde o ortopedista André Evaristo, do Núcleo de Medicina Avançada do Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista. Dúvida esclarecida, é hora de entender em profundidade os três fatores que mais contribuem para as alfinetadas durante a pandemia.

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(Fotos: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
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Trabalhar de casa

Vamos ao primeiro: mais tempo em casa. A psicóloga Cláudia Danienne Marchi, sócia da consultoria de recursos humanos Degoothi, no Rio de Janeiro, avalia que, de forma geral, as empresas não se organizaram para oferecer boas condições de trabalho remoto aos funcionários. “Muitas delas não tinham uma cultura de home office bem estabelecida e precisaram fazer tudo às pressas e sem planejamento”, analisa. Isso significa que profissionais de diversas áreas passaram a prestar serviço sem sair do conforto do lar. E é justamente aí que está o problema: conforto não é o mesmo que ergonomia. Usar o notebook no colo enquanto você está sentado no sofá ou deitado pode até parecer cômodo nos primeiros dias. Mas uma hora a coluna vai chiar.

Os escritórios modernos foram pensados (ou deveriam ser pensados) para garantir que os colaboradores fiquem ali por oito horas sem desenvolver dores pelo corpo. Por isso, as cadeiras trazem suporte para as costas e para os braços. As mesas possuem tamanhos específicos e a tela dos computadores fica alinhada à altura dos olhos. Até a iluminação desses locais segue normas para prevenir encrencas à visão. No ambiente domiciliar, muitas dessas recomendações se perdem pelo caminho. “Quando adotamos uma postura errada por longos períodos, produzimos uma sobrecarga e um estresse maior sobre algumas estruturas da região lombar e cervical, como os músculos, os discos entre as vértebras e as articulações”, destrincha o ortopedista Alexandre Fogaça Cristante, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Em curto prazo, esse desbalanço provoca dores nas costas. Se nada for feito, o desgaste se agrava e pode evoluir até para uma hérnia de disco.

Nesse contexto, é bom ter em mente que o home office vai virar realidade pra muita gente mesmo quando a pandemia arrefecer: um estudo feito pela empresa do ramo imobiliário Cushman & Wakefield aponta que 40% dos empresários que não tinham estabelecido antes a prática do trabalho a distância pretendem adotá-la de forma definitiva a partir de agora. Portanto, é essencial pensar em soluções de ergonomia, que reproduzam minimamente as condições do escritório dentro de um cômodo de sua casa. Para isso, vale investir (ou pedir apoio da chefia) na compra de alguns acessórios básicos, como cadeiras com apoio para a coluna lombar, suporte de notebook, fone de ouvido com microfone acoplado, além de teclado e mouse auxiliares. “Vale ainda adotar o hábito de levantar a cada hora para fazer uma caminhada curta e um alongamento de pernas e braços”, acrescenta a médica Rosylane Rocha, presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho.

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(Ilustrações: Letícia Raposo/SAÚDE é Vital)
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(Fotos: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
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Sedentarismo

Chegamos ao segundo combustível para as dores: o sedentarismo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza 75 minutos de atividade física intensa ou 150 minutos de exercícios moderados durante a semana para os adultos. Essa meta, que já não era cumprida por 47% da população brasileira de acordo com o Ministério da Saúde, se tornou praticamente inatingível durante a pandemia. Afinal, parques, praças, clubes, ginásios, campos de futebol, pistas de caminhada e academias ficaram fechados por boa parte do primeiro semestre, segundo a determinação das autoridades públicas. Só que o buraco parece ser ainda mais embaixo. “As pessoas estão confinadas em ambientes pequenos, sem fazer as movimentações mínimas do dia a dia, como caminhar até o restaurante no horário do almoço”, observa Evaristo.

E o que isso tem a ver com as dores? Pra começo de conversa, o corpo vai perdendo massa muscular. Esse processo ocorre em paralelo ao ganho de gordura. Sobra pra quem? As coitadas das articulações e os pobres dos tendões perdem o suporte e precisam fazer esforço extra para as tarefas do dia a dia. A sobrecarga, claro, vai estourar em algum momento. Só há uma saída para evitar que isso aconteça: manter-se ativo dentro das possibilidades atuais. “É importante priorizar exercícios que usem o próprio peso do corpo para trabalhar os músculos”, orienta o médico do esporte Pablius Braga, do Hospital 9 de Julho, em São Paulo. Pelo bem da coluna, é vital caprichar em práticas que estimulem o core, o conjunto de músculos no tórax e no abdômen que dão sustentação às vértebras. “Treinos funcionais, pilates, RPG e ioga cumprem bem esse papel”, indica o ortopedista Giancarlo Polesello, presidente da Sociedade Brasileira de Quadril.

Para atenuar a imobilidade, muitos quarentenados vêm assistindo a aulas ao vivo no YouTube ou no Instagram. Outros apostam nos aplicativos de celular que trazem treinos pré-programados. A startup AppsFlyer aponta, inclusive, que a procura por soluções fitness online subiu 116% só em março de 2020. Bacana, mas cabe uma ponderação: sem o acompanhamento de um profissional, a atividade física malfeita também pode ser fonte de dor e de lesões. “A prática esportiva é algo muito individual e deve respeitar as limitações de cada um. Por isso, um professor com formação na área consegue adaptá-la às necessidades e aos objetivos de seus alunos”, afirma o ortopedista Ivan Pacheco, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte. Em tempos de isolamento, uma boa sacada é marcar as aulas a distância, com o auxílio das ferramentas de videochamada.

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(Ilustrações: Letícia Raposo/SAÚDE é Vital)
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(Fotos: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
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Estresse e ansiedade

Chegamos, enfim, ao último detonador de dores no cenário da pandemia: os abalos emocionais. Sim, são as altas doses de estresse, nervosismo, ansiedade e tristeza que todos estamos sentindo. E, cá entre nós, não é para menos: além dos milhões de casos e dos milhares de mortes por Covid-19, estamos à beira de uma grave crise econômica, com escândalos políticos a cada semana e uma constante sensação de injustiça, desigualdade e falta de orientação sobre o que devemos fazer para resguardar a saúde e o bolso. “Em paralelo a isso, temos uma alteração profunda dos hábitos, o que desorganizou uma série de padrões da rotina, como o ritmo de sono, as horas trabalhadas e o padrão alimentar”, elenca a psicóloga Dirce Perissinotti, diretora da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. É muita mudança de uma só vez, e nenhum cérebro lida direito com tudo isso.

Daí que o acúmulo dessa tensão vai ser descarregado em algumas partes do corpo. Os ombros se enrijecem. As costas ficam arqueadas. O pescoço se aperta na direção da cabeça. No sistema nervoso, aparecem as marteladas de uma crise de enxaqueca. “Para tentar combater isso, o primeiro passo é criar uma rotina adaptada ao momento e, principalmente, estabelecer horas regulares para dormir e acordar”, sugere a neurologista Thaís Villa, especialista no tratamento das dores de cabeça da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Se a mente está em completo desalinho e a qualidade de vida foi para o espaço, já passou da hora de procurar a avaliação e o suporte de um psicólogo ou de um psiquiatra.

Um artigo recente publicado no periódico British Medical Journal of Sports Medicine ressalta a importância das questões emocionais no aparecimento das dores. De acordo com os autores do documento, todo médico que lida com pacientes que sofrem de incômodos crônicos nas costas, na cabeça ou em qualquer outra área do corpo precisa botar na balança os fatores psíquicos. “O tratamento moderno da dor é multidisciplinar e envolve não apenas cirurgias ou remédios, mas fisioterapia, exercícios físicos, acompanhamento psicológico…”, reforça o fisiatra Marcus Yu Bin Pai, do Hospital das Clínicas de São Paulo. O bem-estar do paciente está no centro da recuperação — afinal, essa pode ser a origem e a solução de todo o incômodo. Isso, aliás, nos remete de novo à trajetória da pintora Frida Kahlo: por mais dolorosa que tenha sido sua vida, a artista nunca deixou de demonstrar paixão por seu trabalho e por aquilo em que acreditava, por mais que a dor exigisse certas adaptações. Eis uma fonte de inspiração para encontrar um pouco de beleza e alívio em meio a esses tempos tão conturbados.

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(Ilustrações: Letícia Raposo/SAÚDE é Vital)
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