O fígado é um trabalhador incansável. A atividade metabólica desse órgão é de uma intensidade vertiginosa. Dela dependem a produção de bile para a digestão de gorduras, a fabricação de hormônios, a liberação de fatores de coagulação sanguínea e a redução da toxicidade de substâncias que o corpo gera ou ingere.
Se olharmos, assim por cima, nossa anatomia, notaremos que a redundância de órgãos é um padrão: dois rins, dois pulmões, dois órgãos de produção de células reprodutivas. Podemos viver bem sem eles ou sem um deles, dependendo do órgão. Podemos, acredite, até viver sem um dos dois hemisférios cerebrais.
Mas o fígado, como o coração, é uma exceção: só há um e não podemos viver sem ele. Seu trabalho sem descanso acaba ocasionando um desgaste natural. E as células do fígado acabam morrendo. Mas aí que entra uma capacidade inigualável desse órgão, a de se regenerar.
Mesmo perdendo 70% de sua massa, o fígado volta a crescer, tão grande é a avidez de suas células em se reproduzir.
Só que é justamente essa característica que desperta o interesse de tantos vírus. São muitas células em multiplicação, muitos recursos a serem explorados. E, no universo dos vírus, existem aqueles com predileção pelo fígado, os causadores de hepatite − que nada mais é que a inflamação desse órgão; a propósito, tudo que termina em “ite” no estudo das doenças quer dizer “inflamação”.
Temos cinco espécies virais diferentes por trás da hepatite: A, B, C, D e E. Mas, além delas, o fígado pode ser agredido por bactérias e toxinas. Daí a necessidade de sempre fazer testes laboratoriais para entender a causa do problema e realizar o tratamento adequado.
Algumas das hepatites virais são transmitidas de pessoa para pessoa pela via fecal-oral: o vírus se espalha pelas fezes e pela ingestão de água ou alimentos contaminados, o que acontece com os tipos A e E. Outras ocorrem por via sanguínea e sexual, caso dos tipos B, C e D.
Se a infecção for muito agressiva, o fígado pode ficar tão comprometido que só um transplante é capaz de salvar a vida. Felizmente, temos vacinas para os tipos A e B.
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Hepatites misteriosas
A relação causal entre hepatites e os vírus de A a E já está bem estabelecida. Mas ligar os pontos entre a presença de um vírus e uma doença ou lesões em um órgão nem sempre é simples. Às vezes, o vírus passou por ali, provocou estragos e já foi embora. Já não dá mais para apontar o dedo para ele.
Outras vezes, o vírus pode nem estar se multiplicando no órgão doente, mas exerce uma ação a distância. Nessa situação, quem faz o estrago é a própria resposta imune do hospedeiro, que, desregulada, agride aquele órgão.
É por isso que, até agora, não conseguimos entender muito bem o que de fato vem causando esse novo tipo de hepatite em crianças. São centenas de casos pelo mundo, inclusive no Brasil, desde o ano passado.
As vítimas têm diarreia, icterícia (quadro que deixa a pele, as mucosas e a parte branco dos olhos amareladas) e falha ou falência hepática. Testadas, todas essas crianças tiveram resultado negativo para as hepatites A, B, C, D e E.
Mas um número expressivo foi positivo para adenovírus, um tipo de vírus que é um velho conhecido de pediatras por causar problemas respiratórios. O intrigante é que o adenovírus não foi o único agente infeccioso encontrado nas crianças com essa “hepatite X”.
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Muitas delas também foram infectadas previamente pelo coronavírus Sars-CoV-2. O que a Covid-19 teria a ver com essa história? Ainda não dá para interpretarmos os achados ao pé da letra.
Talvez os adenovírus e o coronavírus também se multipliquem no fígado? Talvez não se multipliquem, mas mandem a distância sinais de sua presença, o que desencadeia uma resposta imune exacerbada que atinge o órgão? Talvez haja outro vírus ainda desconhecido (ou conhecido) envolvido?
O número de casos vem crescendo rapidamente, mas a ciência não fica atrás. A cada episódio confirmado, mais dados se acumulam para nos ajudar a entender o que causa essa hepatite misteriosa, como ela se transmite e o que podemos fazer para tratar as crianças doentes e prevenir que outras se infectem. Aliás, será que as vítimas são só crianças mesmo?