Quilombolas dão pistas valiosas de como a eletricidade mexe com o sono
Experimento gaúcho publicado em revista internacional avalia comunidades que não têm acesso à luz e qual o impacto disso no descanso noturno
É curioso pensar como uma invenção relativamente recente foi capaz de modificar tanto os nossos hábitos: a lâmpada elétrica foi desenvolvida e patenteada pelo americano Thomas Edison (1847-1931) em 1879, há 139 anos. Se considerarmos o tempo que demorou para que as cidades desenvolvessem seus sistemas de eletricidade e as pessoas garantissem acesso à novidade em suas casas, não temos nem um século com ruas e residências iluminadas quando o sol se põe.
Se antes a única fonte de claridade durante a noite eram as velas e as lamparinas, que duravam pouco tempo e possuíam um raio de ação limitado, a chegada das lâmpadas permitiu estender o horário de trabalho, jantar mais tarde e ficar acordado até altas horas da madrugada sem perceber que o dia já se foi.
Por um lado, esse avanço permitiu conquistas incríveis em todas as áreas do conhecimento. Por outro, bagunçou de vez com o relógio biológico dos seres humanos — os ciclos que nosso organismo tem em respeito ao momento do dia. Era mais fácil entender esse conceito e o seu funcionamento no passado: grosso modo, no claro ficávamos acordados e, no escuro, dormíamos.
Também chamado de ritmo circadiano, esse processo depende principalmente de dois hormônios. O primeiro deles é a melatonina. Quando a luz do sol começa a baixar, lá pelas 5 ou 6 horas da tarde, a glândula pineal, que fica bem no meio do cérebro, começa a produzir essa substância, que faz a gente tirar o pé do acelerador e preparar o corpo para o sono. O segundo hormônio é o cortisol. Ele é fabricado com a chegada dos primeiros raios de sol da manhã e ajuda a despertar aos poucos.
Esse processo todo é responsável por regular diversos aspectos primordiais de nossa biologia, como a temperatura corporal, o funcionamento do cérebro e o próprio estado de sono ou vigília. Entender como esse ciclo influencia a nossa saúde é muito importante — tanto é que o Prêmio Nobel de Medicina de 2017 foi dado a três cientistas que fizeram descobertas sobre o tal relógio biológico.
Mas como é que esse ciclo passou a trabalhar com a chegada de eletricidade? Ora, se a glândula pineal depende do lusco-fusco para iniciar a secreção de melatonina, como pegamos no sono? Pois é justamente esse cenário que vemos hoje: com lâmpadas, televisores, celulares e tablets (e um monte de preocupação derivada dessa sociedade que não desliga nunca), nós vamos para a cama cada vez mais tarde. Ao mesmo tempo, os índices de doenças relacionadas ao descanso noturno, como insônia e apneia do sono, só aumentam mundo afora.
Nada de interruptor na parede
Apesar de a eletricidade ser algo tão trivial em nossas rotinas, ainda hoje temos várias localidades que vivem sem ela — algumas bem perto de nossas cidades ultramodernas, diga-se. É o caso de determinados povos quilombolas, que surgiram a partir de negros e negras que fugiram do sistema de escravidão no século 18 e 19 para fundar e organizar suas próprias terras, espalhadas por várias regiões do Brasil.
Para entender como a ausência das lâmpadas mexe com os padrões de sono, pesquisadores do Laboratório de Cronobiologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e do Instituto de Psicologia Médica da Universidade de Munique, na Alemanha, acompanharam sete comunidades do tipo no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Paraná e em São Paulo entre 2012 e 2017.
Detalhe importante: a exposição à luz noturna variava entre os diferentes povoados. Se a comunidade de Peixoto de Bombinhas, em Viamão (RS), tem eletricidade há mais de 30 anos, os moradores de Bombas, em Iporanga (SP), não possuem esse serviço na região até hoje, enquanto os indivíduos de Areia Branca, em Bocaiúva do Sul (PR), só conquistaram acesso às lâmpadas e tomadas nos últimos dois anos. “Isso nos permitiu acessar diferentes realidades e contextos, num momento em que a tecnologia chega rápido e as coisas mudam numa velocidade impressionante”, analisa a biomédica Luísa Pilz, uma das autoras do trabalho.
Durante os cinco anos de pesquisa, os experts entrevistaram e tabularam as informações sobre os hábitos de sono de 215 moradores dos quilombos. Além disso, um grupo de 148 participantes utilizaram actímetros, aparelhos parecidos a um relógio de pulso que medem a atividade corporal durante as horas no colchão.
Os resultados, publicados na revista Scientific Reports, do grupo Nature, mostram que as comunidades sem luz (ou com pouco tempo usufruindo das instalações elétricas) costumam dormir mais cedo e por mais tempo quando comparadas àquelas que possuem a tecnologia há décadas. “Agora, nós precisamos entender como essa mudança está relacionada à saúde”, aponta Luísa.
Outro aspecto interessante do estudo foi notar como as pessoas organizavam seu dia. “Elas até possuem relógios para se comunicar com o mundo exterior, mas a rotina é regida mesmo pelos ritmos da natureza”, observa a cientista. Essa característica foi marcante justamente nos povoados sem eletricidade e com forte tradição na agricultura.
Como ajustar os ponteiros do corpo
Por mais terrível que esse cenário seja para a nossa saúde, não há como pensar num mundo sem lâmpadas, computadores ou internet. Essas invenções trouxeram enormes facilidades à vida e permitem um acesso incrível à comunicação e ao conhecimento.
Resta, então, nos adaptarmos a essa realidade. Para isso, vale restringir o número de luzes acesas durante a noite em sua casa (seu bolso agradece!) e evitar o contato com as telas da TV, do celular ou do tablet após o anoitecer. Dormir e acordar sempre no mesmo horário também ajuda, assim como praticar os exercícios mais pesados somente pela manhã ou preparar um jantar leve e de fácil digestão. O sono é um componente inegociável de nosso bem-estar! Sem um bom descanso noturno, não há quem aguente viver bem e aproveitar todas as maravilhas do luminoso planeta que habitamos.