Histórias de imortalidade e ressurreição fascinam os seres humanos desde que o mundo é mundo. Ainda que a expectativa de vida dos habitantes deste planeta tenha quase duplicado nos últimos séculos graças aos esforços de vacinação e saneamento básico, só há uma certeza para todos: um dia, vamos partir dessa para uma melhor (ou pior, vai saber…). Seja por doença, acidente ou velhice, a morte é o mais democrático dos processos biológicos.
Mas e se pudéssemos enganá-la? Certamente essa pergunta já passou pela mente de muitos cientistas, filósofos e escritores. Será que um dia descobriremos uma maneira de arrumar os defeitos e as falhas das células e dos órgãos de modo que eles nunca pifem? A aposta de alguns grupos está na criogenia, a técnica de conservar o corpo numa temperatura baixíssima para que, no futuro, quando a medicina tiver mais remédios eficazes contra as doenças que nos assolam hoje, esse indivíduo, morto outrora, seja “religado” e volte a viver.
Parece loucura, mas existem três instituições que fazem esse processo atualmente: a Alcor Life Extension Foundation, a Cryonics Institute, ambas nos Estados Unidos, e a KrioRus, na Rússia. De acordo com os números divulgados, elas possuem um total de 350 corpos ou cabeças (também há a opção de preservar só essa parte) conservados dentro de seus tanques gelados.
O processo é relativamente simples: logo após a morte, uma equipe vai até o hospital ou a casa e inicia os trabalhos. O primeiro passo é fazer o transporte do indivíduo num recipiente cheio de gelo. Depois, todo o sangue é drenado e substituído por uma substância conservante. A troca do líquido vermelho faz com que todas as células ganhem um aspecto vitrificado.
Na sequência, o corpo é ajeitado de ponta cabeça dentro de um tanque com nitrogênio líquido — a ideia é conservar o cérebro ao máximo, caso seja necessário abrir a tampa ou desligar o sistema por algum motivo. A temperatura é reduzida aos poucos até atingir -196 ºC. Tudo é feito bem devagar para evitar que as células sejam danificadas com a formação de cristais de gelo.
Na geladeira
A primeira pessoa a ser preservada pela criogenia foi o americano James Bedford, professor emérito de psicologia da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Ele morreu em 1967, aos 73 anos, vítima de um câncer de fígado. Ano passado, foi comemorado seu “aniversário” post-mortem de 50 anos. Desde então, outros notáveis passaram a integrar o time dos congelados, como o lendário jogador de beisebol Ted Williams (1918 – 2002), o pai da criogenia Robert Ettinger (1918 – 2011), o ator Dick Clair (1931 – 1988) e o programador pioneiro dos bitcoins Hal Finney (1956 – 2014).
Esses e outros nomes de famosos e ricaços se justificam pelo preço salgado praticado pelas empresas: a Alcor cobra cerca de 200 mil dólares para o corpo inteiro e 80 mil só para a cabeça. Em terras americanas, existe a possibilidade de pagar módicas parcelas mensais para usufruir desse serviço após o final da vida. Na KrioRus, o investimento fica entre 18 e 36 mil euros. A companhia russa ainda tem particularidades. Em vez de tanques individuais, eles usam reservatórios com capacidade de estocar até sete clientes — há ainda a possibilidade de criopreservar os animais de estimação juntos de seus donos.
Legal, a criogenia parece realmente fascinante e alguns estudos-piloto demonstraram ser possível reanimar cobaias congelados em laboratório. Mas, infelizmente, a boa e velha ciência não se empolga tanto com o tema… Alguns experts chegam a classificá-lo como charlatanice ou um verdadeiro risco por criar falsas esperanças nas pessoas.
Existem muitos entraves nessa história para pensar que um dia será possível “religar” um ser humano. O primeiro está no próprio cérebro: o órgão tem uma série de barreiras que impedem a entrada de substâncias em seu interior. Isso é um mecanismo de proteção contra a invasão de elementos perigosos, como vírus e bactérias. Desse modo, a chegada daquele líquido conservante que impediria danos às células até a massa cinzenta fica prejudicada.
Outra coisa: ainda não possuímos o conhecimento total de como ocorrem os processos entre os neurônios. Onde ficam guardadas as memórias? Como elas são perdidas ou recuperadas? Como as células nervosas estabelecem conexões entre si? Qual o papel exato dos neurotransmissores em cada uma dessas etapas? Com tantas perguntas sem resposta, é difícil imaginar que o simples “congelamento” do cérebro hoje seja suficiente para preservá-lo num amanhã, com a medicina mais avançada.
Mais dificuldades à vista
Alguns cientistas especulam que, mesmo se for possível fazer aquela cabeça pegar no tranco novamente, é provável que boa parte das lembranças daquele indivíduo esteja perdida para sempre. Além disso, há uma grande chance de ele acordar para sua segunda vida com uma personalidade completamente diferente da que era conhecido no passado.
Outra esperança dos entusiastas da criogenia é criação de alguma interface homem-máquina. Desse modo, seria possível fazer o download das informações armazenadas naquele cérebro e transferi-las para um computador. Por meio da inteligência artificial, o sujeito viraria um ciborgue e estaria de volta à ativa. Sem criar ilusões, essa possibilidade é ainda mais remota e a ciência está engatinhando nessa área do conhecimento.
Não dá pra saber também o impacto de manter as células numa temperatura tão baixa por tanto tempo. O exemplo mais próximo disso que temos no mundo real foi o caso de Anna Bagenholm que, em 1999, sofreu um acidente enquanto esquiava na Noruega. Ela ficou por 80 minutos praticamente imersa em água congelante antes de ser encontrada pelas equipes de resgate. Anna ficou presa, mas conseguia respirar.
Enfim, sua temperatura corporal atingiu 13,7 ºC — a média normal é de 36,5 ºC. Quando Anna acordou após o trauma, só conseguia mover o pescoço. Até hoje, ela sofre com dores nas mãos e nos pés pelos danos que o frio causou em seus nervos.
Claro que a criogenia tem a sua utilidade: hoje em dia ela já é utilizada para preservar óvulos, espermatozoides e embriões humanos, que podem ser reanimados e servir para uma reprodução assistida após meses ou anos guardados. Há a possibilidade também de preservar órgãos inteiros para transplantes, mas a coisa ainda não está bem estabelecida.
Agora, a ideia de guardar um corpo inteiro com pretensões futuras é um passo muito grande e, por ora, está mais no reino da ficção mesmo.