Escrevo enquanto meu bebê dorme. Um sono leve, perturbado por um resfriado. Ele não tem dormido bem. Eu poderia aproveitar essas horas pra descansar, mas um pensamento insistente me mantém acordada. Penso nas chances menores que ele teria de sobreviver se tivesse nascido há sessenta anos.
Dificilmente teria só resfriados. Poderia morrer de pólio, de coqueluche, de difteria, de gripe, de tuberculose. Se tivesse nascido há dois anos, poderia ter morrido de Covid. Eu junto, no parto. Eu antes, grávida. Nada disso aconteceu, em grande parte porque temos vacinas, consideradas, junto com o saneamento básico, a invenção que mais salvou vidas na humanidade.
Não é preciso mais falar que as vacinas da Covid são eficazes, que a cloroquina e outros medicamentos não funcionam contra a doença. Esse texto não vai repetir consensos. Mas, mesmo com dezenas de estudos de qualidade comprovando e recomprovando isso (algo fundamental na ciência, a reprodutibilidade dos resultados), a desinformação segue viva e garantindo poder a seus arautos.
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A eleição dos conselheiros do Conselho Federal de Medicina (CFM) deixou isso bem claro. Francisco Cardoso, o representante de São Paulo, repete até hoje que não há dados convincentes sobre as vacinas. Ficou conhecido agora como “médico que defendia a cloroquina”, mas é bem mais que isso. É um articulador político e figurinha frequente em atos antivacina, com penetração no próprio CFM.
Em 01/12/2022, foi convidado pelo órgão para uma plenária, onde discutiria a “vacinação em crianças contra a Covid, passaporte vacinal e obrigatoriedade do uso de máscaras”. O CFM estava nessa época e ainda está sob gestão de Hiran Gallo, que foi reeleito para seu cargo de conselheiro e que defendeu a atuação catastrófica de Bolsonaro na pandemia.
Antes de Gallo, veio a gestão do médico Mauro Ribeiro, o homem que assinou o parecer que lavou as mãos para o uso descontrolado de remédios ineficazes. Que tentou fazer menos absurda a sandice da cloroquina inalatória. Como prêmio, Ribeiro também foi reeleito e seguirá sendo conselheiro da entidade que zela pela ética da profissão. Está no CFM desde 2009.
Sou bloqueada por Cardoso, mas tive a oportunidade de entrevistar Ribeiro em um programa de TV, ainda no auge da pandemia. Ele disse: ”Uma coisa são os estudos, outra é a prática da medicina”.
Não é que ele não tenha razão: estudo e prática não são a mesma coisa. Mas a ciência serve para nortear a melhor prática possível. E hipóteses levantadas na vida real devem ser confirmadas por estudos. A prática baseada em evidências é, inclusive, prevista no código de ética médica, que diz que é dever do profissional “usar todas as ferramentas de tratamento disponíveis, desde que cientificamente reconhecidas”.
Nos últimos anos, parece que parte dos médicos brasileiros rasgaram esse código em prol dos próprios interesses e paixões políticas. Se tornaram afeitos ao negacionismo como ferramenta para ganhar um poder que não alcancariam de outra maneira. Detentores de uma verdade alternativa, mais dramática e emocionante, que beneficia aliados políticos.
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Para nós, jornalistas que vimos de perto as faces mais nefastas da pandemia e as consequências cruéis do desprezo pela ciência, fica o gosto amargo da derrota. A sensação de que não aprendemos nada. E temos outras pandemias à espreita, que, aliás, já ganharam as próprias campanhas de desinformação no submundo online onde Cardoso e companhia prosperaram.
Estaremos melhor preparados? Ou vamos ver gente morrendo sufocada de novo porque o governo distribuiu ivermectina em vez de comprar oxigênio? Meu filho poderá ser vacinado ou ficará doente? À mercê de um pediatra sendo enganado por outros médicos? É esse medo que não me deixa dormir.
*Chloé Pinheiro é co-autora de Cloroquination: Como o Brasil se tornou o país da cloroquina e de outras falsas curas para a covid-19 (Paraquedas)