Vai dar certo! É hora de rever conceitos e práticas para o bem-estar geral
Autores aproveitam o período de reflexão suscitado pelo Natal para propor uma abordagem mais empática na relação com os outros e o planeta
Fechamos o ano trazendo para este espaço ninguém menos que Adalberto Barreto, psiquiatra, professor e criador da tecnologia social conhecida como terapia comunitária integrativa. O título faz uma homenagem à música composta por MC Liro, Anchieta, Daniel Musy, Julio Raposo, Marquinho Pepe Santos e Uiliam Pimenta. Sim, vai dar certo! Podemos trabalhar por dias melhores… E para todos!
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Natal é o aniversário de uma criança, símbolo do amor, da aliança entre Deus e os homens. Uma criança que, apesar da morte na cruz, foi uma vencedora, aquela que salvou a humanidade.
Natal é a festa da criança mítica, da criança vitoriosa e da criança feliz. No aniversário desta criança divina, símbolo de paz e felicidade, desperta dentro de cada um de nós outra criança, a criança que fomos e que ainda somos.
Esta criança mexe profundamente com outra criança que cada um tem dentro de si. É no Natal que elas se encontram, se olham e trocam palavras.
Cada um terá sentimentos bem específicos, pois eles revelarão o estado de espírito do adulto que somos. Para aqueles que conseguiram realizar seus sonhos de criança, vencer na vida, construir sua existência, há muito a celebrar.
Porém, para outros, que tiveram seus sonhos roubados, suas vidas abortadas, não raro a vontade é fugir das festas, isolar-se e chorar. Este é um momento de balanço de vida, em que tantos descobrem não ter razões para celebrar vitórias. Percebem que a criança que mora dentro de si está amordaçada, abandonada, maltrapilha, rejeitada, vagando pelas ruas da vida.
Segundo o IPEA, a população em situação de rua no Brasil supera 281 mil pessoas e, em dez anos, cresceu 211%.
Muitos se sentem envergonhados, revoltados, não veem sentido nas crianças felizes e ambientes alegres. Enquanto os outros têm razões para sorrir e celebrar, esses angustiados só encontram motivos para chorar e se isolar.
A força e a beleza do menino que traz luz contrastam com a fragilidade do que se é – e do ser que tem se tornado. É compreensível, então, que não se suporte o júbilo alheio e que se refugie no mais profundo de si mesmo, na mais triste solidão.
Na minha experiência como psicoterapeuta, tenho testemunhado a dor e o sofrimento destes infelizes do Natal. Muitos vieram ao mundo, mas não nasceram. Outros nasceram, mas não se desenvolveram. Outros, ainda, interromperam involuntariamente seu crescimento e arquivaram seus projetos de vida.
Faltou-lhes o alimento indispensável à existência: o amor, a compreensão, o carinho, o respeito, a acolhida, o apoio, o estímulo. São existências raquíticas marcadas por uma série de carências. Eles ignoram que possuem dentro de si forças suficientes para libertar esta criança amordaçada e faminta.
Mas perderam a capacidade de se rebelarem, de si indignarem com o estado em que se encontram. Agem como vítimas e vivem como mortas.
No dia de Natal, como eu gostaria de poder acolher todas estas criancinhas infelizes e poder dizer a cada uma que eu acredito nelas. Como eu gostaria de ajudar a descobrir suas potencialidades, desvendar-lhes os olhos, tirar sua mordaça e transmitir-lhes uma mensagem de fé e esperança.
Cada Natal é um apelo a cada um de nós para despertarmos esta criança interior, dar-lhe as mãos, ensinar-lhe a falar e a aprender a sonhar. É um apelo à vida, à libertação de tudo aquilo que nos impede de viver, de amar, de crescer. É um convite à adoção dessa criança abandonada dentro de cada um de nós mesmos, numa trama tantas vezes coletiva.
A evolução das sociedades tem favorecido o isolamento, a intolerância, o sectarismo, o estresse, o medo, tudo agravado por um modelo econômico marcado pela avidez de lucros e benefícios. E assim se destroem recursos socioculturais, comprometendo o vínculo social e precarizando a saúde mental de todos nós.
A humanidade está doente e precisa de ações concretas de cuidados. O brasileiro está no seu limite de tolerância. Sua saúde mental está abalada, já que a capacidade de conviver consigo mesmo e com os outros e a natureza, na busca do pertencimento, da felicidade e do sentido da vida, foi cerceada por intrigas, mentiras, fake news, distorções da realidade e polarizações assassinas. São famílias dividas, amizades desfeitas, agressões gratuitas. O desenvolvimento tecnológico se constrói em detrimento da dimensão humana.
A Covid-19 atingiu as economias até dos países ricos, mas revelou a fragilidade da humanidade que arrisca desaparecer através das desigualdades produzidas por uma economia predatória que afeta sistematicamente tudo, principalmente o meio ambiente e o clima.
É tempo de rever e expandir o sentido de desenvolvimento para todos e para todo o planeta. O momento é de reparar e curar danos e promover a saúde global e mental. Nosso desafio maior é erigir um modelo de desenvolvimento que respeite a natureza humana e o planeta.
A lei que regula o universo é a lei do amor da reciprocidade. Cada um de nós possui em si uma força poderosa e transformadora de si, dos outros e do planeta. Só podemos evoluir numa relação de dar e receber. Isso deveria pautar uma economia inclusiva e um crescimento sustentável.
O conceito de saúde holística é deixar a energia circular: o que sei ensino, o dinheiro que tenho invisto, compro, partilho. Tudo está interconectado. Todo acontecimento é sistêmico e interfere um no outro. Nascemos incompletos e por isso necessitamos uns dos outros. Que este Natal seja uma ocasião para refletirmos sobre o sentido da vida pessoal e social.
É, como defendemos com a Terapia Comunitária Integrativa, uma oportunidade para cuidar de si, da comunidade e do ambiente, criando um espaço de empatia com vínculos mais saudáveis, algo de que tanto precisa o tecido social brasileiro.
Que possamos partilhar saberes, abrir horizontes, descobrir recursos e desenvolver espaços de cuidado e cura mesmo diante de tantos desafios econômicos, políticos e acadêmicos. Que possamos frutificar espaços de escuta e diálogo, um espaço de convivência com a diversidade sem querer colonizá-la. Um espaço de troca de afeto e respeito – hoje e sempre.
* Adalberto Barreto é psiquiatra, professor emérito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Social