Do beijo do presidente aos ataques de ódio em Brasília
De olho em dois episódios recentes da história nacional, nosso colunista reflete sobre as pulsões que mobilizam a mente e a vida em sociedade
Existem beijos e Beijos, diríamos assim, com “B” maiúsculo. E foi um destes que chamou a atenção no dia da posse do novo presidente da República, ganhando comentários nas rodas de conversa depois de viralizar nas redes sociais.
Não é que outros ex-presidentes não beijassem suas esposas. Eles beijaram. Mas é diferente quando o beijo joga mais para torcida do que para a pessoa beijada.
E quando o beijo exprime um “incomparável afago, carícia voluptuosa”, nas palavras do antropólogo Câmara Cascudo, exercendo uma “função inconfundível e paralela, como as águas do Rio Negro e do Solimões”.
Não é preciso ser psicanalista para entender que um bom beijo faz bem para a alma e para o psiquismo. Um beijo de verdade sempre cria algo que o ultrapassa, que soma e vai além, pois expressa, em ato, toda a força de Eros.
A descoberta freudiana de que a nossa mente é palco de uma disputa entre forças psíquicas opostas, as pulsões de vida e de morte, encontra o equivalente mítico na eterna disputa entre Eros e Tanatos.
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Eros, deus grego do amor, representa uma possibilidade de manifestação de nossa humanidade que caminha para a vida, que nos une, que constrói ou reconstrói, que exprime a vitória da vida sobre a morte e que revoluciona.
Em contrapartida, Tanatos personifica a morte, mas, enquanto força pulsional, é um desarticulador. Representa o desmonte, a mentira, o que reduz a realidade a uma série de fragmentos isolados.
Quando somos capazes de mobilizar nossa força erótica e superar a destrutividade que há em nós em nome da transformação da realidade – considerando todas as nossas limitações enquanto mortais –, podemos dizer que somos melhores que o próprio Eros.
Entretanto, instigar o impulso destrutivo das massas ou se entregar a ele, mentindo ou matando em escala industrial, difundindo o ódio ou destruindo o patrimônio de um povo, igualmente também nos torna piores do que Tanatos.
Essa é a monstruosidade que vemos no nazismo. Em Psicologia de Massas do Fascismo (Martins Fontes), o psicanalista austríaco Wilhelm Reich lembra que, se há o nazista, há também o zé-ninguém que compõe a turba enfurecida que vimos destruindo recentemente a Praça dos Três Poderes em Brasília.
Diz Reich: “A mentalidade fascista é a mentalidade do zé-ninguém, que é subjugado, sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado. Não é por acaso que todos os ditadores fascistas são oriundos do ambiente reacionário do zé-ninguém. O magnata industrial e o militarista feudal não fazem mais do que aproveitar-se deste fato social para os seus próprios fins, depois de ele se ter desenvolvido no domínio da repressão generalizada dos impulsos vitais.”
O fascista acha que pode combater um vírus com bravata e gritaria, acusações e mentiras. Ele nunca é revolucionário. Revolucionário é o cientista disciplinado, que observa e testa, experimenta e pesquisa, teoriza e encontra a cura.
Todo o trabalho engajado do cientista requer uma paixão, um grande investimento de energia psíquica de Eros, capaz de organizar os seus esforços na criação de uma nova realidade, melhor para todos.
Um beijo apaixonado de um presidente é simbólico, pois o resgate da força de Eros dentro de nossas mentes pode ser reparador. Sem esquecer que isso também passa pela materialização de uma realidade digna, que permita a cada pessoa viver os seus impulsos vitais de maneira saudável, iluminada pela cultura e pela ciência.
O caminho da promoção do equilíbrio psíquico é sempre uma boa estratégia de combate ao fascismo.