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O preconceito no mercado de trabalho diante de quem tem câncer

Psicóloga reflete sobre como a discriminação se torna um mal tão prejudicial quanto a doença, principalmente para as mulheres

Por Valéria Baracatt, psicóloga, jornalista e ativista*
24 jun 2024, 08h23
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Isolamente e discriminação são tão prejudiciais quanto o câncer (Ilustração: Pedro Hamdan/Veja Saúde)
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Quem tem câncer enfrenta dois problemas: o primeiro, claro, é o próprio câncer; o segundo é a discriminação que ainda existe em grande parte do mercado de trabalho.

Sim, é uma segregação que, por incrível que pareça, sobrevive mesmo depois de tantas campanhas e informações sobre a doença circulando na mídia.

É na busca e na manutenção do emprego — não raro, dentro de um ambiente competitivo por natureza — que pacientes em idade produtiva sofrem muitos de seus piores momentos.

Não se trata de um ou outro caso isolado. A projeção do Ministério da Saúde é que tenhamos 704 mil novos casos de câncer no Brasil em 2024. É, portanto, urgente erradicar o preconceito que, de maneira mais ou menos explícita, viceja nos espaços corporativos.

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Como mulher com câncer de mama, doença com a qual luto há 20 anos, e fundadora e ex-presidente do Instituto Arte de Viver Bem, que apoia pessoas com esse diagnóstico, vivenciei incontáveis episódios de discriminação contra pacientes no mercado e no ambiente de trabalho.

Meu legado nessa causa não ficaria completo se deixasse de lado essa questão. Falo de um comportamento ou de uma reação que afetam a já abalada dignidade dos pacientes, comprometidos na batalha contra a doença.

Não é fácil. E posso falar pela minha própria experiência que ficar sem dinheiro para a subsistência é um dos maiores medos de quem tem câncer no país. Sim, antes tivéssemos que encarar apenas um tumor.

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Uma das cruéis consequências desse tipo de discriminação social é que ela gera crises de ansiedade, depressão e até mesmo pânico.

Isso, por sua vez, derruba ainda mais a imunidade do paciente, tantas vezes já combalida pelo tratamento prescrito. Sabemos que os casos de recidiva do câncer só crescem. Não podemos deixar que a falta de amparo e de solidariedade contribua para esse cenário.

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Minha convivência com os pacientes e seus familiares mostra que a carência de perspectiva no mercado de trabalho atinge a alma e pode ser dilacerante. Eu mesma a senti (e sinto) na pele.

Por isso, a palavra de ordem é acolhimento, até porque, embora o câncer possa impor mudanças na rotina devido ao tratamento e ao manejo de efeitos colaterais, não diminui nossa capacidade de produzir e fazer a diferença.

A discriminação, contudo, gera isolamento, e ele pode repercutir até no bolso. Esse foi o motivo pelo qual criamos, no instituto, um programa de geração de renda, com cursos para que a paciente pudesse ter opções a fim de prover seu sustento.

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O preconceito, com frequência, é a principal razão, sórdida razão, que leva uma pessoa com câncer a ser demitida — ou a não ser admitida.

É como outro golpe além do diagnóstico.

“Descobrir a doença tem um impacto muito forte pela perda de controle nas tomadas de decisão em relação à própria vida”, diz o psicólogo Paulo Andrade, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).

“O gestor e os colegas de trabalho precisam ter um olhar cuidadoso e mais humanizado para os pacientes”, defende.

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Apesar dos discursos bonitos, porém, na realidade a demissão pode vir. E, não bastasse o constrangimento de se ver desligada ou não admitida, a pessoa com câncer arcará com outro entrave na sua luta com a doença: a falta de recursos financeiros.

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Tratar o câncer não é barato. Sem salário, inúmeros cidadãos largam o convênio, as clínicas particulares e o tratamento para depender exclusivamente do SUS, que, embora preste um bom atendimento, fica cada vez mais sobrecarregado.

Os números falam por si. Segundo pesquisa do Icesp, 40% das mulheres com câncer de mama não conseguem voltar ao mercado de trabalho.

O Brasil tem uma lei — a 14.238, de 2021 — que, em seu artigo 6º, estabelece que não se admite, sob pena de punição ao infrator, negligência ou discriminação contra pessoas com câncer, o que, evidentemente, abrange o ambiente de trabalho.

Na prática, porém, ela é pouco respeitada. Inclusive, nos casos que vão ao tribunal, muitas vezes os próprios magistrados interpretam que a situação não configurou discriminação.

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Esse contexto todo faz com que, segundo levantamentos, 90% dos funcionários prefiram não falar da doença para seus chefes. Imagine só! Assim eles ficam ainda mais expostos à sensação de isolamento e impotência.

Ao contrário de muitos empregadores no Brasil, diversas empresas em outros países acordaram para acolher, do ponto de vista físico e psicológico, os colaboradores em tratamento de câncer.

O assunto foi abordado no Fórum Econômico Mundial deste ano, atestando a relevância de falarmos sobre o tema e nos mobilizarmos.

Alguns pontos chamam a atenção nessa discussão. Já existem exemplos de iniciativas que norteiam a busca pelo equilíbrio entre trabalho, vida pessoal e tratamento entre os funcionários afetados pela doença. A conscientização dos colegas, a capacitação do paciente frente aos desafios inerentes ao diagnóstico e ao tratamento e até o bom uso da tecnologia — ora, não vivemos na era do teletrabalho? — com certeza podem ajudar a mitigar os percalços e a tirar proveito de nossas fortalezas pessoais.

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E, sim, é preciso lutar abertamente contra o estigma, que faz empregador e sociedade enxergarem o trabalhador com câncer como alguém com uma sentença de morte ou incapacitado ao emprego.

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Gestores ficam preocupados com a rotina de consultas e exames, com receio de que o colaborador não atenda às demandas. Não é verdade. O mundo é adaptável. A agenda e a mentalidade também.

Quanto mais alguém se sentir acolhido, melhor será sua qualidade de vida e mais útil se sentirá à sociedade. Depois que o CEO e chairman da Publicis, Arthur Sadoun, anunciou estar com câncer, em 2023, a agência de publicidade criou o aplicativo Day by Day, com diálogos de coaching ao vivo por meio de sua plataforma destinados a pacientes e demais indivíduos com alguma necessidade.

Precisamos de mais ações de apoio e inclusão como essas, ainda raras no Brasil. Estamos diante de uma doença social que tem de ser curada. E rápido. Ou será que minha única saída é o aeroporto?

*Valéria Baracatt, psicóloga, jornalista e ativista, foi fundadora e presidente do Instituto Arte de Viver Bem

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