Em setembro de 2021, um xenotransplante (transplante entre espécies diferentes) chamou a atenção do mundo para esse sonho antigo da comunidade científica.
Em um experimento de prova de conceito, um rim de porco geneticamente modificado foi transplantado em uma paciente já em morte encefálica. A ideia funcionou: o sistema imune não reagiu imediatamente destruindo o órgão recebido e a execução cirúrgica se mostrou viável.
Toda vez que um fato científico relevante como esse aparece na mídia, criam-se expectativas de que será imediatamente transferido para a prática clínica, e isso nem sempre ocorre. No mesmo mês da experiência, cerca de 53 mil brasileiros aguardavam um transplante de órgão no Brasil, dos quais 26 862 esperavam por um rim.
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O transplante é uma das opções de tratamento para a doença renal crônica. Segundo o Censo de 2020 da Sociedade Brasileira de Nefrologia, 144 779 pacientes estão em terapia dialítica no país, sendo 92,7% deles em hemodiálise.
Será que nos próximos anos poderemos acabar com a fila de transplantes usando essa nova técnica de modificação genética que permite o uso de órgãos de animais?
Do ponto de vista da ciência, o uso de rins e outros órgãos de porcos tem sido almejado há algum tempo. Existem estudos publicados em grandes revistas científicas sobre a “descelularização” de rins suínos. O que acontece é o seguinte: só o arcabouço do órgão é mantido, preservando uma base para o crescimento de células, e a esperança é poder preenchê-lo com células humanas.
Existem estudos de formação de túbulos renais em colágeno e em matriz porcina descelularizada com crescimento de células humanas e de animais que comprovaram algumas funções. A evolução da ciência tem sido muito rápida nesse sentido. Diferentes grupos, em várias partes do mundo, têm pesquisado e produzido avanços tecnológicos.
O uso de células geneticamente modificadas é um recurso que tem sido aprimorado tanto do ponto de vista funcional como em segurança clínica. E sabemos que as medicações necessárias para evitar a rejeição de órgãos transplantados são eficazes. Transplantes renais com tipos de sangue diferentes e de pacientes com anticorpos pré-formados já são possíveis em nosso meio.
O Brasil é o segundo país no mundo em número de transplantes renais, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Desde 2020, cerca de 4 800 transplantes renais são feitos no anualmente no país, sendo que 96% deles ocorrem pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Realizamos atualmente transplantes de três tipos por aqui:
1. Transplante renal com doador falecido
2. Transplante renal inter vivos relacionados (entre pessoas com grau de parentesco)
3. Transplante renal inter vivos não relacionados (entre pessoas sem vínculo familiar)
Além disso, realiza-se transplante renal para pacientes sensibilizados, aqueles que têm múltiplos anticorpos. Mas, nessa modalidade, é necessário um tratamento antes do transplante chamado dessensibilização − medicações são administradas e uma remoção dos anticorpos assegura o sucesso do procedimento.
Também se faz o transplante renal com incompatibilidade no sistema sanguíneo ABO, que também demanda uma terapia específica prévia. Tudo isso para mostrar que a qualidade do transplante renal feito no Brasil é excelente.
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Em fevereiro de 2020, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP realizou, pela primeira vez no país, um transplante renal pareado. Ele já existe lá fora e agora pôde ser conduzido por aqui como projeto de pesquisa até que haja mudanças na lei que regulamenta os transplantes. A modalidade visa aumentar o número de transplantes renais e reduzir a grande fila de espera.
Nesse contexto de avanços, temos desafios. A pandemia de Covid-19 provocou uma queda no número de transplantes, aumentou o tempo de espera na fila e diminuiu o número de doações de órgãos (não só de rins). Isso torna ainda mais importante a sensibilização da população sobre a doação e seu impacto na vida de tantos brasileiros.
Temos que considerar que muitas ideias e estudos em fase pré-clínica e clínica nem sempre comprovam a viabilidade de uma estratégia na prática médica. No entanto, as inovações na área de transplantes, que agora envolvem até transplante entre espécies, são sem precedentes. É algo que nos enche de esperança e, em breve, poderá transformar a vida de muita gente.
* Nádia Guimarães é nefrologista, médica do Grupo de Injúria Renal Aguda e Chefe do Serviço de Nefro-Obstetrícia do Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo e diretora médica regional da DaVita Tratamento Renal