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Desvendando verdadeiros talentos por trás do autismo

Conheça a síndrome savant, na qual pessoas com condições mentais sérias, como o autismo, possuem traços de genialidade

Por Cristina Maria Pozzi**
Atualizado em 2 abr 2019, 09h59 - Publicado em 17 out 2017, 16h08
savant
Pacientes com autismo podem ter talentos incríveis (Ilustração: Daniel Bueno/SAÚDE é Vital)
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Pedro* é um menino de três anos e vem à consulta a pedido da escola. Sua mãe o acompanha e conta que o filho é muito inteligente: conhece letras, números e cores em português e inglês e aprendeu a ler sozinho. Descreve também todos seus programas favoritos, os horários e canais de televisão em que são apresentados e reconhece diversas vinhetas. Entrega-se às brincadeiras de encaixes e montagens com grande satisfação e as realiza com impressionante destreza.

Porém, seu comportamento na escola está causando conflitos. Embora correta, sua linguagem é monótona, repetitiva e de uma pobre narrativa. Mesmo quando questionado ativamente de como foi seu dia na escola, responde com um lacônico “legal”. Exibe leitura mecânica, compreensão pobre e um entendimento literal.

Além disso, desorganiza-se com quem não segue regras ou com mudanças na rotina. Prefere brincar isolado e repetidamente com quebra-cabeças. Incomoda-se com barulho dos colegas ou do entorno cobrindo as orelhas. Definitivamente não experimenta alimentos novos na escola, aceitando apenas o rotineiro lanche que traz de casa: biscoito “da vaquinha” com suco de caixinha de uma marca específica. E só.

Depois de muito investigar todo o seu histórico, conclui-se que Pedro pertence à expressiva fração de 1% da população que está no espectro do autismo, justificado pelas características clínicas que envolvem déficits nas áreas de comunicação e engajamento social, além dos interesses restritos e comportamentos repetitivos.

Mas Pedro também exibe hiperlexia, um quadro que se caracteriza pela leitura precoce, obsessão por letras ou números e dificuldades na linguagem verbal. Sintomas que podem ser comuns ao autismo e, em algum número de casos, associam-se às excepcionais habilidades savant.

Esse talvez seja um dos fenômenos mais intrigantes para quem estuda o cérebro humano: a síndrome savant (sábio, em francês) ou savantismo é uma rara e extraordinária condição na qual pessoas com disfunções mentais sérias, incluindo autismo, apresentam as chamadas “ilhas de habilidades especiais” ou “ilhas de genialidades”. Estas se traduzem por uma aptidão altamente desenvolvida para certas áreas (cálculos, música, desenho, pintura, entre outras) em contraste discrepante e incongruente com seu déficit global.

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São algumas centenas de relatos de pacientes com habilidades savant desde os primeiros relatos. Em 1789, Benjamim Rush, psiquiatra americano, contou sobre as habilidades de Thomas Fuller, um de seus pacientes. Ele era capaz de calcular quantos segundos teria vivido uma pessoa de 70 anos, 17 dias e 12 horas. A resposta vinha em 90 segundos com precisão categórica, incluindo os 17 anos bissextos!

Já Thomas Wiggins, conhecido como Cego Tom e descrito por Edouard Séguin e Darold Treffert, tinha fascínio por sons de toda espécie, mas acima de tudo por música. Aos 4 anos, sentava ao piano e tocava belas melodias. Aos 6, começou a improvisar por conta própria e, aos 11 anos, tocou para o presidente americano. Alguns músicos, desconfiados de suas habilidades, colocaram-no à prova, tocando duas longas composições completamente novas para ele, que as reproduziu com perfeição e aparentemente sem nenhum esforço.

Apesar de inacreditável e incrível, muitas vezes tais capacidades são valorizadas apenas como curiosidade ou excentricidade e consideradas de pouca relevância científica. No entanto, trazem consigo uma importância em potencial para o melhor entendimento do talento e habilidades em geral, bem como na elucidação de modelos de inteligência, aprendizado e principalmente memória. Sem falar nos mecanismos que operam em vários níveis (genes, cérebro e comportamento) e estão envolvidos no transtorno do espectro do autismo ou em outras doenças cerebrais.

Vale destacar que há um conjunto de habilidades savant – a prodigiosa memória é um ponto em comum entre elas. São descritos savants de minúcias ou detalhe, que apresentam preocupações excessivas e obsessivas com músicas, números, fatos históricos ou itens obscuros, como sons de motores.

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Savants com talento apresentam habilidades espetaculares na música, nas artes ou em outra área de interesse de forma proeminente e contrastante com seu prejuízo funcional e cognitivo. E temos os savants prodígio, com habilidades extraordinariamente fora do comum e desempenho cognitivo variando de muito superior a muito inferior. Provavelmente existam em torno de 100 savants prodígio conhecidos no mundo atualmente.

De maneira geral, cinco categorias de habilidades savant são encontradas: musical, desenho, pintura ou escultura, cálculo de calendário e matemática. Mas outras foram relatadas com menor frequência, como linguagem, sinestesia e precisão nas horas. A verdade é que não há savantismos iguais. Eles são particulares em essência, na forma de se manifestar, de representar e também de evoluir. Essa diversidade é que encanta e deveria ser melhor discutida, incluída e valorizada.

Lembro de ter identificado um garoto de 10 anos cujo interesse por eletricidade era tanto que em todas as margens superiores do seu caderno universitário desenhava redes de eletricidade em postes e transformadores. Ele sabia qual a voltagem em cada fio, de onde vinha e para onde ia. Certo dia, talvez um dos mais excitantes da sua vida, contou eufórico que tocou um transformador durante o período que estava desligado da rede para reparos. Pequenos detalhes como esses do seu caderno acendem a luz para suspeita de um quadro de desenvolvimento atípico e podem mudar a interpretação do caso.

Esse garoto, em particular, trazia um equivocado laudo de desatento e hiperativo e, não fossem os diabinhos (ou anjinhos, caso prefiram) a sussurrar nos meus ouvidos, seus interesses restritos, seu modo de falar alto e repetitivo e sua pobre habilidade social não seriam notados – sequer questionados. Assim, mais um autista com atenção a detalhes ou savant de minúcias foi reconhecido.

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E mais um caminho a ser percorrido por mim, por ele e sua família na busca da compreensão da sua dimensão humana se descortinou. Onde seus interesses (assim como a hiperlexia de Pedro) irão desembocar, não se sabe. Mas espera-se que sejam impulsionados por uma força vital de encorajamento e apoio por todos aqueles envolvidos.

* Nome fictício.

**Médica neuropediatra, doutora em Ciências pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e professora do curso de Medicina da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina.

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