Rio Grande do Sul: vida não deve “voltar ao normal” após tragédia
Ontem choramos pela Vila do Sahy e pela Amazônia. Hoje choramos pelo Rio Grande do Sul. Amanhã choraremos por qual lugar?
A tragédia que ocorreu no Rio Grande do Sul, cuja responsabilidade pesa sobre cada um de nós, deu origem a uma crise que revela o quanto nossas cidades não estão preparadas para um fenômeno natural de tal monta.
As cenas repetidas pela imprensa apontam para a urgência de ações de regeneração ambiental e reestruturação sistêmica ampla do tecido urbano e rural, não restritas somente à região afetada, que hoje sofre terrivelmente pelo que se produziu.
A situação atual no Sul e a seca do verão passado na Amazônia, ainda em nossa memória recente, fazem parte de um continuum de eventos climáticos extremos. Com os quais, infelizmente, teremos de lidar se não nos colocarmos em movimento para mitigar sua intensidade e frequência, e continuarmos reagindo apenas para lidar com os prejuízos trazidos por esse tipo de catástrofe.
Nesse sentido, apesar de termos os corações constritos pelo que se passa com nossos vizinhos sulistas, aguardamos, tensos, o momento em que um novo cenário dantesco será anunciado em outros locais.
Há um ano, os deslizamentos de encostas no litoral norte de São Paulo estavam sob os holofotes. A epidemia de dengue, outra deriva da perturbação climática, assola o país e ainda não deu demonstrações de arrefecimento.
Vamos nos habituar a isso como se fosse algo inevitável, mazelas contemporâneas sobre as quais não temos nenhuma responsabilidade? Como se fossem caprichos de alguma deidade raivosa? Por que é tão difícil percebermos a implicação de nossas ações (destrutivas) e inações (preventivas e regenerativas) nesses fenômenos?
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Essa crise, urbanística, ambiental, social e ética, exige respostas à altura, que se espraiem em ações de curto, médio e longo prazo. Nesse momento, as ações se concentram em proteger as pessoas da falta de abrigo às novas intempéries, da fome, da sede, do frio, das doenças adventícias (leptospirose, hepatite, parasitoses e outras infecções) e da violência.
É estarrecedor acompanhar notícias sobre casas sendo saqueadas e mulheres e crianças sofrendo violência sexual, justificando a criação de abrigos apartados de homens que não conseguem inibir sua índole violenta nem em meio à desolação.
A acolhida psicológica também se faz necessária, posto o impacto emocional traumático ligado não só à perda de familiares, mas também ao esfacelamento do mundo de pessoas que perderam tudo, de documentos às roupas, de móveis à casa.
Essa acolhida, necessária para a preparação das pessoas para a reconstrução de suas vidas, não poderá acontecer somente como exercício abstrato do pensamento e dos afetos, mas deve se estender para a organização de estratégias de recomposição do ambiente urbano, rural e florestal com a participação ativa das pessoas implicadas nessa crise.
Nesse sentido, é necessário iniciar já ações que terão efeito em médio e longo prazo.
Regenerar o ambiente pode e deve ser considerado uma atividade que recompõe não somente o cenário a ser trabalhado, mas também as pessoas que se engajam nesse processo. Cuidar do mundo é cuidar de si. Grandes contingentes de pessoas se encontram desempregadas e podem participar da realização deste trabalho.
A vida não deve voltar à “normalidade” que precedia esse evento.
Não podemos nos satisfazer com uma reacomodação das pessoas em estruturas improvisadas ou acampamentos provisórios sem um redesenho profundo do tecido urbano e ambiental. Não só das cidades e do estado afetados agora, mas de todo o país.
Ontem choramos pela Vila do Sahy e pela Amazônia. Hoje choramos pelo Rio Grande do Sul. Amanhã choraremos por qual lugar?
*Alexandre Valverde é médico psiquiatra, neurodivergente e apresenta o podcast “Fractais”, que trata de temas ligados às neurodivergências.