Quando se fala em saúde LGBT, as pessoas tendem a pensar automaticamente em aids ou infecções sexualmente transmissíveis de maneira geral. É claro que esses são temas importantíssimos. Mas, quando eu, que sou uma profissional de saúde bissexual, penso em saúde LGBT, a primeira coisa que me vem à cabeça é a violência.
O Brasil é um dos países com maior incidência de assassinatos motivados por homofobia e tem o maior registro de homicídios de pessoas trans. Essa é a ponta do iceberg: na base que sustenta e autoriza o assassinato motivado por ódio estão muitos outros casos cotidianos de violência física, moral e psicológica. Eles não costumam ser formalmente denunciados, porém são reportados com frequência aos ouvidos dos profissionais de saúde que demonstram empatia.
Nos últimos anos, tivemos avanços importantes no combate ao preconceito, mas a história da maior parte dos meus pacientes LGBT ainda é marcada por violência familiar, na escola e no trabalho. Isso, por muitas vezes, aparece na forma do menino que está indo mal nas aulas e é levado a unidade de saúde com a mãe pensando ser um caso de dislexia ou TDAH, mas nós acabamos descobrindo que ele vem sofrendo bullying por ser afeminado, o que afeta a saúde mental e o desempenho escolar.
Em outras ocasiões, é a adolescente que parou de buscar os medicamentos para tuberculose na rede de saúde, com uma inexplicável falta de apoio familiar. Ao investigarmos, notamos que tudo começou na mesma época em que ela apareceu com uma namorada.
Às vezes, enxergamos a violência no paciente que tem HIV e, embora esteja com o vírus controlado há anos (sem causar problemas de saúde), sofre com depressão ou ansiedade pelo medo de que alguém descubra seu status sorológico. Ora, já foi tão difícil se assumir gay que a ideia de que alguém saiba sobre o HIV e reaja de forma agressiva o paralisa.
Pessoas trans costumam ser ainda mais vulneráveis. Infelizmente, não é incomum elas sofrerem preconceito dentro do próprio serviço de saúde. Já tive pacientes que combinavam de chegar pouco tempo antes do horário de fechamento da unidade, quando a sala de espera estava mais vazia. Ou que passavam para pegar uma receita e pediam que eu a entregasse do lado de fora da clínica.
Ainda mais frequente é a pessoa aguardar a consulta e ser chamada aos berros pelo profissional de saúde por seu nome de registro, e não pelo social. Isso causa desconforto e vergonha por expor a todos o fato de ser transexual sem seu consentimento. Para evitar esse constrangimento, é importante que os prontuários eletrônicos tenham espaço para preenchimento do nome social. Aí, mesmo se o indivíduo não tiver mudado os documentos de identidade, ainda assim poderá ter um atendimento de saúde com respeito a sua identidade.
Há também a problemática da LGBTfobia reproduzida pelo próprio profissional de saúde. Não me surpreende saber que muitas pessoas LGBT evitam ao máximo procurar médicos ou serviços de emergência. Mesmo se vão a esses locais, elas não costumam revelar sua orientação sexual ou identidade de gênero, ainda que isso seja, possivelmente, importante para um atendimento preciso.
Segundo dados do Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas, 40% das mulheres não contam que são lésbicas ou bissexuais quando procuram atendimento médico. Claro que nem sempre essa informação é essencial para o propósito da consulta, mas, na perspectiva de quem trabalha na área da saúde da família, sempre é valioso conhecer de verdade sua paciente. Uma avaliação completa envolve compreender seu contexto familiar e social, suas perspectivas, comportamentos e medos.
Muitas vezes, saber a orientação sexual ou a identidade de gênero do paciente faz a diferença. Quando o assunto não é abordado, o profissional acaba presumindo que o indivíduo é cisgênero e heterossexual, o que pode gerar um atendimento inadequado.
Vivi um exemplo curioso disso com um interno (estudante de medicina), que fazia estágio onde trabalhei. Era um dia cheio de pacientes, então pedi para que ele atendesse um homem que eu havia diagnosticado com sífilis na semana anterior. Seria uma consulta simples: bastava conferir se ele tinha utilizado os remédios corretamente e coletado o exame de sangue. Depois disso, poderia gastar todo o tempo restante da consulta com orientações sobre cuidados de saúde sexual.
Pensei comigo mesma — muito satisfeita com a minha sagacidade! — que seria ainda mais interessante que o interno conduzisse também esse segundo momento do atendimento. Ora, eles tinham idades próximas e ambos eram homossexuais, então talvez a identificação permitisse que o paciente se sentisse mais confortável para tirar dúvidas. Só não me ocorreu discutir a estratégia com o interno.
Uma hora depois, o interno retornou para minha sala satisfeito com a consulta, contando que tudo tinha corrido bem. Quando indaguei sobre se o paciente tinha ficado mais à vontade para conversar abertamente sobre ser gay, o interno me olhou com cara de choque. Não só esse assunto sequer veio à tona, como ele fez recomendações pouco úteis, porque englobavam práticas heterossexuais e prevenção de gravidez.
A verdade é que os profissionais de saúde, de forma geral, não são treinados e capacitados para abordar com naturalidade a diversidade sexual. Essa lógica cis-heteronormativa vem da nossa criação na sociedade e é reforçada ao longo da formação de tal maneira que, para fazer uma medicina mais diversa e acolhedora, precisamos exercitar diariamente a desconstrução de atitudes generalistas.
*Julia Lima Bezerra é médica e escreve em colaboração com a Cuidas, startup que conecta empresas com médicos e enfermeiros para atendimentos no próprio local de trabalho. Ela cursa o segundo ano da residência em Medicina de Família e Comunidade. Nos últimos três anos, atuou na Atenção Primária, atendendo principalmente moradoras e moradores de comunidades no Rio de Janeiro. Por ser uma profissional de saúde bissexual, foi convidada a compartilhar sua experiência de formação e vivência em unidades de saúde tratando a população LGBTQIA+.