O início de um novo governo traz a oportunidade de debater meios para fortalecer, implementar e assegurar direitos com a devida equidade aos cidadãos brasileiros. Inclusive porque o tema da (des)igualdade tem muito a ver com saúde.
Os negros representam mais da metade da nossa população — 54% das pessoas no país se declaram negras, de acordo com o IBGE. Apesar de algumas conquistas institucionais, esse contingente está mais exposto a uma série de problemas de saúde devido a questões genéticas, históricas e sociais, que aumentam sua vulnerabilidade a essas doenças.
Segundo o Ministério da Saúde, estão entre as enfermidades mais preocupantes do ponto de vista étnico para a população negra a doença falciforme, a pressão alta, a hipertensão específica da gravidez e o diabetes. Para ficar num exemplo altamente prevalente: o diabetes atinge em torno de 50% mais mulheres negras do que brancas e 9% mais homens negros do que brancos.
Se olharmos para a doença falciforme, marcada por uma alteração nos glóbulos vermelhos que faz essas células do sangue perderem a elasticidade e sua forma arredondada com o tempo — adquirindo o aspecto de foice, daí o nome do quadro —, veremos que a incidência no nosso povo varia de 2 a 6%, mas passa a algo entre 6 e 10% entre os negros.
Essa doença de origem genética dificulta a passagem do sangue pelos vasos de pequeno calibre, comprometendo a oxigenação dos tecidos. E é o maior exemplo do racismo institucional. Entre a sua descoberta, em 1910, e a primeira política pública voltada a seu controle no país, passaram–se 95 anos!
Nenhuma doença percorreu quase um século da sua descrição até a implementação de um programa de assistência pública — e falamos de um problema que acomete milhões de pessoas.
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Muito além dele, os negros também estão mais suscetíveis a desnutrição, doenças ocupacionais, moléstias infecciosas e parasitárias, dependência química, transtornos mentais, complicações na gravidez e no parto, mortalidade infantil… A lista infelizmente é longa.
Em tempos de pandemia, os negros ainda foram os que mais morreram por Covid-19, e os que menos receberam vacina até agora. Uma das formas mais eficientes de combater esses índices e desigualdades é tocar na ferida e garantir que a população participe das decisões sobre a saúde no Brasil.
Ao ouvirmos os cidadãos, podemos construir políticas públicas que, de fato, atendam suas necessidades — sem deixar nenhum grupo, maioria ou minoria, de fora do processo.
É por isso que iniciativas e atores como as socialtechs ganham espaço e vêm se somar ao trabalho de autoridades, organizações da sociedade civil, gestores e profissionais de saúde, inspirando pessoas comuns a se fazerem ouvir e a mudar a história da saúde no Brasil.
Nossa proposta é trabalhar em rede para ampliar a mobilização em defesa do SUS e o acesso a diagnóstico e tratamento para doenças que afetam boa parte dos negros no país, combatendo também o racismo e suas repercussões no bem-estar dessa população. Só assim criaremos um sistema de saúde realmente respeitoso e universal.
*Sheila Ventura Pereira é assistente social e diretora da APROFe – Saúde da Pessoa Negra; Carolina Cohen é especialista em comunicação de causas e cofundadora da Colabore com o Futuro