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O poder perigoso do amor

A reflexão de um dos principais escritores brasileiros sobre relacionamentos tóxicos

Por Fabricio Carpinejar, escritor*
1 ago 2023, 10h01
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  • Dê poder a alguém e descobrirá quem a pessoa realmente é. O amor é também um poder. Portanto, ocorre sempre uma transformação da nossa personalidade quando começamos a amar alguém. Alguns ficam mais calmos, mais seguros, mais tranquilos; outros se tornam mais chatos, desconfiados e controladores.

    A gente nunca sabe qual será a mutação com o início de um namoro. Há quem relaxe, respeitando o espaço do outro. E há quem passe a ter ciúme, demonstrando possessividade. É uma caixinha de surpresas, às vezes uma caixinha de Pandora, aquela que liberta alguns horrores.

    Nem sempre abrir a tampa de um temperamento é alvissareiro. Existem casos em que a pessoa era uma companhia mais atraente quando ainda não era amada. Sim, talvez sem perceber, você gostava mais dela quando não havia amor em jogo…

    Ela se esforçava mais em ouvi-lo e respeitava sua individualidade. Depois que a relação começou, parece que o parceiro esqueceu que você existia antes dele. Quer fazer tudo junto e, mais grave, tudo do jeito dele.

    Perde-se, assim, a liberdade, que é o alicerce da admiração e da amizade. Você até gostaria de pedir para que voltasse a amar menos, gostaria que a pessoa voltasse a ser um “ficante”, pois só funcionava mesmo desse jeito.

    Não podemos mais acreditar que o amor melhora necessariamente todo mundo. Ele transforma todo mundo, mas não traz a garantia de uma evolução.

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    Carregamos quem somos para dentro de um relacionamento, com a bagagem de nossas qualidades e nossos defeitos. Aquele ser tão fofo, agradável e independente pode virar, de repente, com a convivência de um namoro ou casamento, um grude insuportável.

    Pode mandar quarenta mensagens diárias, cobrar que você não ouviu um áudio, reclamar que não atendeu uma ligação, que não conferiu um post no Instagram. Você descobre que não tem um companheiro ou companheira, mas pegou um carrapato.

    Amor não é disponibilidade integral. Para evitar a dependência tóxica, é recomendável que cada lado do casal possua diferentes fontes de felicidade além do romance para não viver unicamente dele, para não sobrecarregá-lo com as suas expectativas e frustrações.

    O amor, esse poder maior, vem de graça, porém é capaz de falir a sua vida no caso de uma doação irrefreável.

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    A gratuidade dos sentimentos não deve implicar que aceitemos passivamente o que recebemos do outro. É preciso recusar o ciúme, a chantagem, a ameaça, a birra, a raiva, a censura, a falta de educação, ainda que estejam dentro de um pacote com momentos agradáveis.

    Dentro do amor, nem sempre surgem dadivosos sentimentos. Escolha, filtre, rejeite o que não serve. Temos uma precipitada mania de aceitar o que é oferecido: injeção na testa e veneno no coração.

    + LEIA TAMBÉM: Quer viver mais? Cuide das suas conexões sociais

    Imagine você realizando o check-in em um hotel e o recepcionista avisa que tem direito a um upgrade e a uma promoção de boas-vindas: suíte e consumo do frigobar liberado. Em um contexto normal, você consumiria apenas água, seria econômico e restritivo. Pensaria duas vezes antes de abrir uma embalagem.

    Ciente agora de que não gastará coisa alguma, come as barras de chocolate, os salgadinhos, esvazia a bancada, bebe os refrigerantes e as cervejas. Nem sente vontade, mas se obriga a aproveitar a cortesia como se não houvesse amanhã.

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    Certamente, ficará enjoado e indisposto pelos excessos intempestivos, comprometendo a calma da sua viagem, dos seus passeios, das suas reuniões de trabalho.

    O que iria digerir com parcimônia e controle transforma-se em uma devastação sem precedentes. Raciocina que é uma chance rara e que não tem como desperdiçá-la. O que não percebe é que converteu o desejo em desespero.

    Foi além do estômago e do fígado, agiu inflamado pela carência. Só porque é de graça, ultrapassou seus limites e contrariou as próprias regras. De igual forma, talvez mantenha a ilusão de que seu relacionamento é um frigobar liberado, despreocupando-se com as despesas e a reposição.

    Se o seu romance o isola dos amigos e da família e admite a limitação porque acha que a pessoa quer ficar mais tempo com você, se o namoro ou o casamento é entremeado de discussões e rompantes de grosseria e tolera a gritaria porque julga que é preocupação, você não tem valorizado a sua saúde emocional. O amor se tornou tóxico. E pode virar fonte de estresse e sofrimento.

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    A quem não quer se enveredar por esses caminhos, algumas reflexões e leituras são bem–vindas. Para entender e vivenciar um relacionamento do início ao fim, eu começaria recomendando o livro Ensaios de Amor (L&PM), do filósofo francês Alain de Botton.

    Nele o pensador mostra as armadilhas da atração e da convivência, dissecando um antigo relacionamento. De modo didático, traz o que pensou na época, o que realmente aconteceu e sua visão anos depois.

    Para não cair num relacionamento tóxico, minha sugestão é o romance Dentes (Todavia), do escritor italiano Domenico Starnone. Nessa ficção contemporânea, o personagem perde os dentes numa discussão de casal. Mas não consegue sair da dependência de não ser amado.

    Pois você é muito mais dependente quando não é amado. Uma fábula sobre o abismo nem sempre atraente da condição humana. Ao qual somos empurrados por ninguém menos que o amor.

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    * Fabricio Carpinejar é poeta, pensador e escritor, autor de 50 livros, entre eles Depois É Nunca (Record)

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