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Demasiado humano: vida com altas habilidades tem seus percalços

Indivíduos superdotados podem contribuir para o desenvolvimento da sociedade, mas precisam de orientação adequada e de condições para florescer

Por Alexandre Valverde, psiquiatra*
26 jul 2024, 16h21
superdotado
Termo "superdotado" está sendo substituído por "indivíduo com altas habilidades" (Freepik/Reprodução)
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No início do exercício da minha profissão de psiquiatra, acreditava que avaliar e quantificar a inteligência das pessoas era uma maneira de hierarquizar a humanidade, de criar apartheids biológicos.

Mais tarde, compreendi que reconhecer a capacidade cognitiva, o QI de alguém, revelava padrões de muitas outras características pulsantes de nossas existências: nossos afetos, nossos sentidos e sensibilidades, a maneira como interagimos conosco mesmos e com os outros.

A maior parte da população mundial apresenta um QI que gira em torno de 100. A média no Brasil é 83. Problemas sociais crônicos, insegurança alimentar, falta de saneamento básico e acesso à saúde, educação e cultura levam a essa diferença.

No mundo, a cada cem pessoas, duas destoam pela sua capacidade criativa e inventiva, com facilidade para surfar no próprio pensamento abstrato, aprender coisas novas e descobrir conceitos, reter informações diversas sobre campos de interesse variados, sem dificuldades, quase que espontaneamente.

Esse padrão do comportamento, presente em duas a cada cem pessoas, é o tipo de inteligência que se chamava de superdotação. Atualmente, preferimos usar o termo pessoa com altas habilidades. O QI dessas pessoas gira em torno de 130, embora uma pessoa possa apresentar altas habilidades sem necessariamente ter o QI nesse nível.

O que são altas habilidades?

São crianças que podem, muitas vezes, aprender a ler sozinhas. Durante toda a vida, darão demonstrações de autoaprendizagem. Não precisam saber de cor todas as respostas para qualquer coisa. Elas sabem, antes, como elaborar questões para melhor abordarem um problema.

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Ainda crianças, essas pessoas causam perplexidade pela rapidez e destreza com que desenvolvem suas habilidades motoras de equilíbrio, controle fino dos movimentos, desenho e desenvoltura esportiva.

São independentes, autossuficientes e responsáveis na realização de suas tarefas, desenvolvendo um senso crítico e autocrítico bastante aguçado, balizador de suas ações, realizadas com esmero de quem pode se manter longamente, por muitas horas, concentrado.

+ Leia também: Educação emocional pode melhorar conduta e reduzir hiperatividade

Por que algumas pessoas têm altas habilidades?

Pensar que uma pessoa carrega um “super dote” é imaginá-la cheia de adereços e coisas, vantagens materiais ou cognitivas, que poderiam significar uma vida abastada, fácil e cheia de bonança, porém, essas características não estão agregadas sobre essas pessoas como penduricalhos.

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Somos fractais. A estruturação de nossas artérias, brônquios, neurônios, é fractal. Nossos pensamentos são fractais. Nossas inteligências são fractais. Não à toa usamos a expressão pensamento arborizado, para falar do modo como as ideias progridem nas nossas cabeças, como brotos de uma planta que cresce rápida e vigorosamente.

Pessoas com altas habilidades apresentam outro modo como esses fractais se intricam. Fotos com mais pixels? Tecido com mais trama? Volto a nos comparar às árvores. Cada pessoa, uma árvore. Teremos as diferenças entre elas. Jaboticabas, pitangas, ipês e jequitibás. Todas são árvores, cada qual à sua maneira.

E todas florescem, cada qual à sua maneira. Mas os ditos superdotados precisam de apoio e um ambiente adequado para atingirem seu pleno potencial.

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Altas habilidades no Brasil

2% da população do Brasil representa 4 milhões de pessoas, porém o número de pessoas com altas habilidades reconhecidas e devidamente orientadas sobre sua própria condição é muito inferior.

Segundo a OMS, apenas 24 mil crianças brasileiras, pelo censo de 2020, de um universo de 2,3 milhões de crianças, receberam o reconhecimento e diagnóstico adequado. Ainda há um grande contingente de adultos a espera de um diagnóstico. Muitos talvez nunca o recebam.

Esse é um problema com repercussões importantes para a educação e para a saúde mental dessas populações. Mas não só: para a economia do país.

Pessoas com altas habilidades podem viver percursos escolares e profissionais caóticos, apesar da supercapacidade cognitiva, se não forem estimuladas e orientadas segundo suas necessidades especiais. Muitas também estão no espectro autista, com vivências de grande sofrimento mental devido à não consciência da própria condição.

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Finalmente, para a economia do país, podemos apontar a fuga de cérebros. Aqueles que obtêm desempenho acadêmico notável, mas que, por falta de política de retenção e atração de talentos nas universidades, acabam se mudando para centros de pesquisa internacionais, onde são mais valorizados e reconhecidos.

Como calcular aquilo que não uma, mas milhões de pessoas com altas habilidades cognitivas, afetivas, criativas e esportivas, deixam de produzir para si e para a cultura e desenvolvimento do país?

Quem saberia a falta que essas pessoas, que vivem ainda à sombra, fazem em nossas vidas? Quando teremos um panorama completo de quem e quantos somos, além de um sistema de busca ativa, nacional, democrático, inclusivo e propulsionador de nossas potências? Quanto tempo até que deixemos de ser um país que vira as costas para sua população com altas habilidades?

*Alexandre Valverde é médico psiquiatra, neurodivergente e apresenta o podcast “Fractais”, que trata de temas ligados às neurodivergências.

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