“A vida é como uma tigela de cerejas”. A expressão, que já foi popular nos Estados Unidos, servia para ilustrar situações leves e saborosas. Isso no comecinho do século passado. Com o passar do tempo, passou a ser usada com ironia, encaixando-se em contextos amargos. Tudo a ver com o ano que se foi e deixou um gosto tão ruim.
Longe desse enquadramento desagradável, o fruto destaca-se em qualquer mesa, especialmente em datas festivas, in natura ou em receitas. “Entre as frutas menores, a cereja, convidada de honra nos banquetes e piqueniques das imagens, é servida com vinho ou carnes, e mesmo peixe”, diz um trecho de História da Alimentação (clique para comprar), obra organizada pelos historiadores europeus Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari.
A aparência, de encher os olhos e a boca de água, resulta de um mix de fitoquímicos, sobretudo as afamadas antocianinas, que lhe conferem a coloração de um vermelho vivo ou mais escuro.
Além de embelezar, as tais substâncias blindam o alimento dos raios solares, das variações climáticas, entre outros fatores. Trazem também uma porção de benfeitorias aos consumidores. Graças a efeitos antioxidantes e anti-inflamatórios, não faltam comprovações científicas da sua atuação a favor da saúde do coração e do cérebro.
A cereja ainda guarda outras preciosidades, caso da quercertina e do ácido elágico, protetores das células em geral. E vitaminas C e do complexo B, além de minerais como o potássio, marcam presença na polpa.
Frutinhas pela história
A doçura e a riqueza nutricional da cereja teriam servido os soldados lá na Roma Antiga. Inclusive, historiadores atribuem tanto aos romanos quanto aos gregos a disseminação e o cultivo das cerejeiras no continente europeu.
A espécie, originária de uma área que abrange parte da Europa e da Ásia, foi batizada de Prunus avium, pode atingir 20 metros de altura e gosta mesmo é de clima mais frio – daí ser mais rara e cara no Brasil.
Em seu berço, a fruta é apreciada das mais diferentes formas, conforme a criatividade do cozinheiro. Na Idade Média, médicos recomendavam comer como entrada, justamente por ser leve e não atrapalhar a digestão.
Uma preparação nascida entre a Itália e os Balcãs, há alguns séculos, e que faz enorme sucesso, é a chamada cereja ao marasquino. Na versão tradicional, uma variedade conhecida como marasca é mergulhada em potes cheios de licor. A finalidade dos antigos era garantir que não faltasse em temporadas de escassez, como no inverno.
Outra velha receita, que remonta ao século 16, é um tipo de aguardente, o kirsch. Feito de cerejas bem maduras, surgiu na Europa Central, entre a Alemanha e a França. Continua embriagando muita gente até hoje.
Por aqui, como se sabe, um de seus papeis principais é como ornamento no topo dos bolos, na mais completa tradução de beleza. Mas não é preciso se contentar com um ou dois exemplares. Afinal, a música escolhida para esta coluna, composta em 1931, é “Life Is Just a Bowl of Cherries”, de Ray Henderson e Lew Brown.
E fica a nossa torcida, sem ironias, para que a vida seja realmente doce como uma tigela de cerejas em 2021.