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Entrevista: “Para viver com saúde, a gente precisa refletir sobre a morte”

Criador do Festival inFINITO, Tom Almeida discute o fim da vida, os cuidados paliativos e a necessidade de falarmos sobre morte, principalmente na pandemia

Por Theo Ruprecht
Atualizado em 2 out 2020, 16h53 - Publicado em 2 out 2020, 10h20
tom almeida festival infinito
Tom Almeida propõe uma discussão mais transparente sobre a morte. (Foto: Divulgação/SAÚDE é Vital)
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Tom Almeida atuou na área de marketing em diversas empresas — ele inclusive criou sua própria agência. Mas a coragem nos negócios, claro, não o impedia de conviver com seus receios. “Se eu olhar na minha história, sempre tive muito medo da morte”, diz, em entrevista exclusiva a Veja Saúde.

Por muito tempo sua relação com a ideia do fim da vida não foi equilibrada. Mas três casos na própria família o fizeram repensar esse momento: em um intervalo relativamente curto de tempo, sua mãe, seu pai e um primo morreram e o obrigaram a enfrentar de frente esse assunto.

A partir desses episódios e de tantos outros ensinamentos, Tom Almeida entendeu a importância de a sociedade discutir abertamente a questão da morte e da finitude. De acordo com ele, essa atitude estimula a busca por bem-estar físico e mental. “Para viver intensamente e com mais saúde, a gente precisa refletir sobre a morte”, afirma.

Entre outras iniciativas decorrentes dessa mudança de postura, Tom Almeida criou o Festival inFINITO. Em 2020, o evento chega a sua terceira edição discutindo a morte sob diferentes perspectivas. Destinado para toda a população, ele acontece nos dias 3 e 4 de outubro, com convidados do Brasil e do resto do mundo.

Nesta entrevista, Tom Almeida traz sua visão sobre a morte — não se trata de negar a tristeza, mas de olhar para ela com maturidade. Ele ainda discute sua visão de saúde, o papel da Medicina no fim da vida, os cuidados paliativos… E traz o efeito da pandemia de coronavírus (Sars-CoV-2) nessa temática. Confira:

Veja Saúde: Comumente, as pessoas veem saúde como um sinônimo de maior distância possível da morte. Como você enxerga isso?

Tom Almeida: Hoje, as pessoas se relacionam com a morte com dois sentimentos principais, que dominam tudo: medo e muita dor. Óbvio que eles fazem parte desse processo da morte, mas fica uma visão limitada. Por isso que ninguém relaciona com ela de maneira saudável. Nada de positivo pode caber em um espaço onde só há medo e sofrimento.

Quando você passa a se relacionar melhor com a ideia de que a morte é um processo natural, que tudo tem seu fim, surge uma visão menos negativa. Obviamente, a morte é o fim de um ciclo, mas pode ser uma morte natural.

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Não dá pra falar de morte saudável, porque é o fim da saúde por um ângulo. Mas você pode olhar de maneira saudável para a morte. Inclusive você vai viver de forma mais intensa por esse caminho.

Qual a importância de termos uma visão de que a morte não é um aspecto puramente macabro da vida?

Com isso, a gente se relaciona com a vida de forma mais madura. Ignorar que a morte vai acontecer é uma forma quase infantil de lidar com a vida. Porque a morte vai acontecer. Não dá para cruzar os braços e não brincar.

Se eu olhar pra isso e entender que um momento isso vai acontecer e pensar em como isso vai acontecer, começo a ter uma reflexão da minha vida. Como eu vou aproveitar da melhor forma possível a minha vida?

Eu acho que, ao antecipar essa relação com a morte, você não deixa um monte de coisa pra última hora. Porque, no fim das contas, pode não dar tempo. Eu penso sobre meus valores, quais pessoas quero me relacionar, que tipo de relação quero ter. A morte traz a perspectiva de uma vida mais bem vivida.

Como a gente se relaciona de maneira mais saudável com a morte, mas sem ficar obcecado?

Eu acho que primeiro precisamos estar abertos para essas conversas. O medo que eu sinto é do processo da morte ou do que vai acontecer depois? Se eu tenho medo de sofrer, o que fazer? A medicina tem formas de cuidar melhor do fim da minha vida. E eu posso me informar sobre isso.

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Ah, mas e se eu tenho medo do que pode acontecer após a minha morte? Então a questão envolve mais espiritualidade e eventualmente o sustento da família. E dá para planejar essas coisas também. É um processo de autoconhecimento.

Relacionar-se com a morte envolve pensar ativamente no processo. Eu não estou sendo inovador aqui. Se for olhar para diversas culturas, religiões e linhas de pensamento bem antigas, você vai ver como há uma relação mais concreta com a morte.

Quando um monge budista encontra o outro, ele diz “até amanhã ou até a próxima vida”, sabendo que isso pode acontecer. É essa perspectiva de começar aos poucos a se relacionar com isso. E um bom ponto de partida é pensar quando você foi tocado pela morte ou por um assunto ligado a ela.

No seu caso, como a morte te tocou de maneira mais significativa?

Se eu olhar na minha história, eu sempre tive muito medo da morte. Para estabelecer uma relação boa, não foi fácil. Eu morria de medo dos meus pais morrerem, principalmente a minha mãe. E daí o primeiro contato mais próximo foi a morte dela, há cinco anos trás.

E aí foram três mortes seguidas. Um ano após a da minha mãe, foi a de um primo muito próximo e, no ano seguinte, a morte do meu pai. E isso mudou completamente minha percepção.

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Na minha mãe, eu me senti totalmente refém do processo. As escolhas eram sós dos médicos. Agora vai ser isso, agora vai para UTI, agora vai ser entubada, agora vai ser sedada. E isso sem eu saber o impacto dessas decisões. Não teve compartilhamento de decisão. Eu pensei: esse é o pacote da dor.

Eu não conversei com minha mãe, eu não sabia o que ela queria. Eu só entendi que era daquela forma. O que eu sei hoje eu não sabia, então fui refém.

Com meu primo, que morreu novo, com 41 anos, eu comecei a abrir conversas. Ele estava na fase terminal, e ninguém tinha coragem de falar sobre o que estava acontecendo. Como você está? Você está com medo da morte? Eu tive coragem de falar sobre isso.

E ele recebeu bem. A partir do momento que abri espaço para essa conversa honesta, sem julgamento, criou-se um espaço de intimidade e confiança. Foi ali que descobri os cuidados paliativos, que é a abordagem da medicina que cuida do sofrimento. A gente começou a cuidar do sofrimento dele e ver as possibilidades de melhorar a qualidade de vida. A morte iria acontecer e ali a gente entendeu isso. Mas como viver melhor até que aconteça?

Depois olhei para o meu pai. Meu pai estava com 86 anos. Não tinha nenhuma doença, mas estava frágil e a coisa estava acontecendo. Eu falei: preciso abrir essa conversa com ele. Não quero que aconteça o que aconteceu com minha mãe.

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Aí fui conversar com ele sobre medo da morte, sobre o que era importante para ele. O que ele gostaria de fazer, quando não valeria mais a pena viver. Isso foi nove meses antes da morte dele, então muitas das decisões que a gente tomou no hospital foram em função dessa conversa e da experiência com minha mãe.

Por exemplo: eu questionei mais as decisões dos médicos. Meu pai acabou não indo pra UTI, porque eu perguntei o que ela ofereceria a mais para o bem-estar dele, em comparação com ficar no quarto com a família. Ele teve um ambiente familiar. A gente pode se despedir, pegar na mão dele.

Em dado momento, alguns médicos falaram de sedá-lo. E eu questionei de novo: por quê? Meu pai estava confortável, sem dor. Sedação é para dor. Ele está morrendo, mas não está sofrendo. O desconforto era do médico. Quando meu pai estiver desconfortável, aí claro que vamos ver. Mas isso foi três dias antes da morte dele. Poderiam roubar três dias de vida do meu pai.

Com essas experiências, eu reparei que precisava compartilhar esse tipo de coisa. Com o movimento inFINITO, eu tenho uma meta muito ousada de fazer com o que o Brasil se torne um dos dez melhores países para se morrer.

Como você define saúde?

Meu conceito de saúde é olhar para o corpo como um templo. Eu tenho uma máquina para cuidar, fazer manutenção. Esse é o ponto de partida, mas vai além. Tenho que cuidar da saúde mental, da saúde espiritual, porque sou um ser completo e complexo.

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Eu consigo fazer isso sempre e contemplar tudo sempre? Não! Mas é um caminho, uma consciência pelo menos de focar nisso. É uma jornada.
Você não falou sobre morte nesse conceito.

Pois é! O tanto que eu falo da morte é porque, na essência, ela nos obriga a falar sobre a vida. Por isso que eu fico tão feliz com o evento inFINITO. As pessoas saem inspiradas, querendo falar de vida. Sai todo mundo cheio de vida, querendo viver. Para viver intensamente e com mais saúde, a gente precisa refletir sobre a morte.

E o festival deste ano do inFINITO, como vai ser?

A gente está indo pra 3ª edição. Ela vai ser totalmente virtual e queremos tirar o maior proveito disso, incluindo pessoas do brasil e do mundo inteiro.
O guarda-chuva é “conversas sinceras sobre viver e morrer”, com um time de pessoas de diferentes áreas. Eu vou trazer uma grande referência em cuidados paliativos, que o BJ Miller. Ele tem inclusive um documentário na Netflix chamado a Partida Final. Ele é um espetáculo. Aí tem palestra e depois uma conversa.

Outra pessoa que estamos trazendo é o Andrew Solomon, que escreveu O Demônio do Meio-Dia (clique aqui para comprar), um livro importante sobre depressão e suicídio, que são os grandes temas do momento.

Ainda teremos o Dallas Graham, que é um designer e trabalha com crianças com doenças raras que ameaçam a vida. Ele pergunta para elas: “Se você fosse contar uma história para o mundo inteiro, o que seria?”

E daí vai desenhando a história junto com a criança e tirando fotos. A criança vira uma autora. Ela cria uma história ingênua, mas cheia de tapa na cara para os adultos. E depois o Mauricio de Souza vai conversar com ele. E teremos muitas outras coisas bacanas. Todo ser humano pode e tem que participar!

Os cuidados paliativos e as decisões compartilhadas no fim de vida têm ganhado força?

Eu tenho visto melhora, mas precisamos caminhar muito ainda. É uma melhora sutil, pequena em porcentual. Mas para pessoa que perdeu alguém de forma digna, o luto é muito mais saudável. Se a gente pensar que, para cada pessoa que morre, de quatro a dez outras pessoas entram em processo de luto, é bastante benéfico.

Ainda existe resistência, mas eu estou vendo uma revolução em empoderar os pacientes e os familiares. Estou vendo paciente perguntar: o que esse tratamento vai gerar de benefício e qual seu impacto? E se eu não quiser fazer, como vai ser? Ainda existem médicos resistentes a isso, porque questiona o poder deles. Mas existe um movimento positivo.

Essa revolução, que lidero com o inFINITO, vai vir antes pela sociedade civil, que pode pressionar os profissionais. Quando meu pai morreu, basicamente não tinha serviço de cuidados paliativos. Eu brinco que quase implantei os cuidados naquele hospital. Se as pessoas têm o olhar e o conhecimento, elas começam a mudar o cenário.

Isso não menospreza as intervenções médicas, certo?

De maneira alguma. A Medicina é super importante. Os cuidados paliativos cuidam do sofrimento de pessoas com doença grave que ameaçam a vida. E isso pode ser feito no começo ou na fase terminal. E pode acontecer em paralelo com o tratamento.

Eu conheço várias pessoas que já tem câncer metastático e estão em tratamento para gerenciar a doença, já sabem que não tem cura. E o cuidado paliativo vai trazer o conforto aí. A Medicina é muito bem-vinda.

E um bom paliativista precisa ter conhecimento técnico profundo. Cuidar da dor de uma pessoa não é simples, tem técnica. Hoje, os profissionais de saúde no Brasil ainda cuidam mal da dor. Ainda tem no ambiente médico aquela frase: “Não existe mais nada a ser feito”. Pode não ter para a doença, mas para a pessoa existe um milhão de coisas a serem feitas para pelo menos trazer conforto.

Mas é bonito que a nova geração de médicos está olhando para isso. Eu falo para os estudantes de medicina com os quais tenho contato que, se você só olha para a cura, você vai fracassar. Mas a mentalidade de cuidar o melhor possível, aí você sempre vai ganhar. E não que não tenha que olhar para cura. Pode olhar. Mas tem que pensar no cuidado também.

O jeito de olhar a morte e o luto mudou com a pandemia?

Ganhou-se mais visibilidade. Ela ficou mais próxima de mim e da minha família. As pessoas falam: “Isso pode realmente acontecer comigo”. Eu posso perder meu avô, meu pai. Isso escancarou nossa finitude, nossa impermanência. No início da pandemia, as pessoas estavam com muito medo da morte. E abriu a curiosidade: e se isso acontecer, o que fazer?

Foram provocadas a pensar sobre isso. Eu sinto essa diferença com o movimento inFINITO. O número de pessoas que passou a me seguir, a acompanhar os eventos, dobrou.

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