Pergunta rápida: qual a principal causa de cegueira evitável antes dos 65 anos? Se pensou em glaucoma, catarata ou degeneração macular, errou feio. A resposta correta é… O diabete. É que a falta de controle dos níveis de açúcar no sangue tem entre os seus desdobramentos a retinopatia. Como o nome sugere, ela agride a retina, tecido no fundo do globo ocular que converte a luz do ambiente em sinais elétricos — é assim que eles são lidos pelo cérebro como imagens. Se nada for feito, com o passar dos anos a doença pode escurecer completamente a visão. Mas o que assusta ainda mais é bater os olhos nas estimativas da retinopatia: até 90% dos diabéticos do tipo 1 e 60% daqueles que desenvolvem o tipo 2 vão sofrer com ela.
Apesar de a condição ser grave, a maioria dos indivíduos com o sangue doce demais parece ignorar a ameaça. E um levantamento realizado recentemente pela Sociedade Brasileira de Retina e Vítreo (SBRV) retrata exatamente essa falta de informação. Num questionário online que contou com a participação de 932 diabéticos, 69% desconheciam o problema. Para piorar, 89% disseram não estar a par dos tratamentos que revertem o estrago e 80% afirmaram que não foram diagnosticados com alterações na retina — número que não bate com as projeções dos especialistas. “Nós não esperávamos índices tão ruins”, admite o oftalmologista Jorge Rocha, um dos coordenadores da pesquisa.
Diante de dados pra lá de alarmantes, a SBRV pretende intensificar a sua campanha “Veja bem, veja para sempre” ao longo de 2016. O objetivo é conscientizar sobre a importância de averiguar a saúde dos olhos com frequência. “Vamos fortalecer o trabalho nas redes sociais, e estamos em contato com os endocrinologistas, que lidam com o diabético de perto, para que também façam parte desse esforço”, noticia Rocha, que integra a diretoria da SBRV.
Se a retinopatia é flagrada em seus estágios iniciais, é possível reverter eventuais falhas na visão. Para isso, é essencial que o diabético se encontre mais vezes com o oftalmo. Os portadores do tipo 1 devem consultá-lo a cada 12 meses a partir do quinto ano do diagnóstico — é nesse período que a retina começa a apresentar estragos. “Quem tem o tipo 2 precisa visitar esse profissional pelo menos uma vez ao ano desde a detecção do desequilíbrio da glicemia, já que não sabemos quando a doença realmente se iniciou”, orienta a endocrinologista Solange Travassos, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes.
Também é crucial não perder de vista os sintomas característicos da retinopatia. São eles: visão embaçada, dificuldade ao ler e o aparecimento de pequenas manchas pretas ou avermelhadas no campo de visão. “Nesses casos, o médico vai pedir o exame de fundo de olho e, se necessário, recorrer a testes mais apurados para analisar a extensão do quadro”, descreve o oftalmologista Minoru Fujii, do Setor de Retina do Hospital Cema, na capital paulista.
Mas o que fazer quando a retinopatia se instala? “A conduta número 1 para amenizar suas consequências é manter a glicemia dentro dos parâmetros adequados”, responde a endocrinologista Tarissa Petry, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Isso é alcançado com remédios para o diabete e a adoção de um estilo de vida regrado. Porém, a glicose não é a única que prejudica os dutos por onde flui o sangue. Especialmente entre os diabéticos — mas não apenas entre eles —, também é necessário ficar atento ao colesterol e à hipertensão. O excesso de gordura aumenta o risco de encrencas no sistema circulatório e a pressão alta estreita o calibre dos tubos sanguíneos, fatores que limitam o aporte de nutrientes à retina. “O combate à retinopatia ainda inclui emagrecimento, abandono do tabagismo e prática de atividade física”, lista o oftalmologista Rubens Belfort Junior, presidente do Instituto da Visão e professor da Universidade Federal de São Paulo.
Arsenal de primeira linha
Se os vasos já apresentam irregularidades, os médicos via de regra lançam mão de tratamentos bem focados. A principal saída é a fotocoagulação, método baseado em aplicações de raio laser nos olhos para queimar as regiões prejudicadas, impedindo que a devastação se espalhe. “Em geral, são várias sessões até conseguirmos destruir as áreas acometidas”, esclarece Fujii. O procedimento é feito em ambulatório, sem necessidade de internação ou anestesias potentes. Por ser barata e simples, essa é a saída terapêutica mais comum hoje em dia.
Uma alternativa é o implante biodegradável de longa duração. “Ele tem ação anti-inflamatória, o que ajuda a aliviar os danos e recuperar a visão”, conta Rocha. Outro avanço recente são os antiangiogênicos, uma classe medicamentosa que está ganhando cada vez mais destaque. “O remédio é administrado por injeções no globo ocular e bloqueia a formação de vasos. Isso estabiliza a doença e melhora a acuidade visual”, explica a neurologista Fernanda Boulos, chefe do Setor de Neurociências e Retina da Novartis. O laboratório suíço produz o ranibizumabe, um anticorpo monoclonal que pertence à categoria. Ele é indicado para casos complicados, quando o problema já atinge a mácula, o ponto central da retina, e há uma probabilidade significativa de cegueira.
Um trabalho assinado por experts da Rede de Pesquisa Clínica de Retinopatia Diabética, que reúne órgãos americanos e canadenses, comparou o laser e as drogas antiangiogênicas em 305 voluntários com o distúrbio. Após dois anos de acompanhamento, as estratégias mostraram uma efetividade parecida. “A tendência é que as escolhas sejam individualizadas de acordo com o paciente”, observa Fujii. No entanto, a popularização dos antiangiogênicos ainda esbarra no preço salgado. E, até o momento, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não os incluiu na lista de tratamentos de cobertura obrigatória por parte dos planos de saúde — dessa forma, muitos se recusam a custeá-los.
Nas situações gravíssimas, em que os vasos se romperam e a mácula dá claros sinais de que não está bem, a última cartada dos oftalmologistas é a vitrectomia, uma cirurgia que, digamos, limpa o interior dos olhos. “A operação envolve retirar o vítreo, o fluido que preenche o globo ocular, e, assim, remover o sangue e a gordura que vazaram”, detalha Belfort Junior.
Agora, independentemente da terapia escolhida, o ideal é que ela não demore para entrar em cena. “Precisamos iniciar o tratamento em questão de dias”, reforça Solange. Infelizmente, essa não é a realidade do Brasil. “A fila para passar por esses procedimentos na rede pública supera seis meses”, lamenta. Isso só reforça a tese de que o manejo correto do diabete e os exames regulares com o oftalmologista são o caminho para evitar que os olhos percam, aos poucos, a doçura de enxergar o mundo.
De olho na gravidez
A diabética que está esperando um bebê não deve se esquecer de marcar consultas com o oftalmologista uma vez a cada trimestre da gestação. Dentro dos nove meses, algumas mulheres experimentam alterações na visão. “É que aumenta o nível de substâncias no sangue capazes de elevar o risco de lesões na retina”, avisa Solange Travassos. Se as artérias que irrigam os olhos já estão arrasadas, a deterioração pode evoluir com maior rapidez.