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Um olho no relógio, outro no prato: os segredos da crononutrição

O horário das refeições pode ser tão importante quanto o que escolhemos comer. É o que revela uma área de estudo em ebulição

Por Lucas Rocha (reportagem e texto) e Laura Luduvig (design)
27 ago 2024, 09h23
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  • O plano para uma alimentação saudável inclui diversidade, sabor e quantidade adequada de nutrientes. Bom, isso você já sabe — e não é de hoje. E se a gente contar que os benefícios de um cardápio variado e equilibrado podem ser potencializados por um ingrediente precioso?

    Um elemento que não se encontra à venda em feira ou supermercado, mas pode ser acessado aí no seu pulso, na parede da cozinha ou na tela do celular. Sim, falamos do tempo, mais precisamente do horário das refeições. Não se trata de uma nova dieta nem de um segredo compartilhado em redes sociais.

    Os ponteiros do relógio, quando sincronizados com nosso ritmo biológico, podem influenciar como o corpo desfruta dos comes e bebes. E essa é a razão de existir de uma área da ciência em crescimento, a crononutrição.

    Ela recolhe evidências de que a gestão do tempo, fundamental para a organização da rotina e de uma agenda alimentar consciente, é ainda mais determinante para o bem-estar do organismo, contribuindo para diminuir o risco de doenças como diabetes, problemas cardiovasculares e distúrbios do sono.

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    Ao planejar e programar os momentos à mesa, é possível melhorar a relação com a comida e tirar proveito do que ela tem a oferecer ao corpo. “Adiantar o café da manhã, fazer do almoço a principal refeição e evitar ir para a cama de barriga cheia já são um bom ponto de partida”, ilustra a nutricionista Cibele Crispim, pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

    Para seguir o compasso da crononutrição, é preciso desvendar primeiro os mecanismos do relógio biológico, um sistema complexo que rege hormônios e células e é conhecido como ritmo circadiano. Ele desempenha um papel crítico na regulação do metabolismo, influenciando a temperatura corporal, o sono, o controle do apetite e as performances física e cognitiva.

    Já reparou que, para algumas pessoas, acordar cedo é uma das piores experiências? E, para outras, é o oposto: o pico de produtividade acontece justamente durante a manhã? Pois é, cada um tem seu ritmo mesmo, uma inclinação natural para dormir, acordar e realizar certas atividades em determinados horários. É o que os especialistas chamam de cronotipo.

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    De maneira geral, a população se divide em três grupos. Os matutinos dormem cedo e são mais ativos no comecinho do dia. Os vespertinos ostentam um pico de energia à noite e, consequentemente, precisam acordar mais tarde. Já os intermediários ou indiferentes tendem a ficar pelo meio do caminho, adaptando-se bem aos horários impostos por compromissos sociais.

    Conhecer o próprio perfil e respeitá-lo na medida do possível é uma maneira de aumentar a disposição, manter o humor e dormir melhor. Por outro lado, desconsiderar os ditames circadianos pode patrocinar o aparecimento de doenças. E é nesse ajuste fino que a comida entra: quando pulamos refeições ou abusamos delas em horários impróprios, há um preço a pagar.

    Um estudo da Universidade de Milão, na Itália, aponta que alterações no relógio biológico, causadas por predisposição, problemas de saúde ou rotinas atribuladas, bagunça o organismo a ponto de acelerar o envelhecimento e elevar o risco de câncer e doenças cardíacas e neurodegenerativas.

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    O ponto de preocupação é que a humanidade tem trocado sistematicamente o dia pela noite, contrariando seu padrão biológico. Seja por trabalho, seja a lazer, esse comportamento, quando constante, é altamente perigoso, impactando o equilíbrio físico e mental.

    Uma análise conduzida por cientistas suecos e holandeses, publicada no periódico British Medical Journal (BMJ), alerta que o hábito está por trás de ganho de peso, diabetes tipo 2, infarto, AVC e diferentes tipos de tumor. A despeito do cronotipo, passar as madrugadas em claro não parece ser uma boa.

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    O que a crononutrição busca é entender como as escolhas alimentares e mudanças na agenda interferem nesse enredo todo. A abordagem começou a ganhar relevância quando, em 2013, pesquisadores espanhóis publicaram os achados de uma análise com 400 pessoas acima do peso que se tratavam em clínicas diferentes naquele país.

    O emagrecimento se mostrou mais pronunciado entre os pacientes que almoçavam mais cedo — sempre antes das 3 da tarde. De lá pra cá, outros grupos passaram a escrutinar como o timing da merenda repercute no aproveitamento dos nutrientes e no desenvolvimento de doenças crônicas.

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    Clique para ampliar (Foto: urfinguss/Getty Images | Design e ilustração: Laura Luduvig/Veja Saúde)

    Mais e mais evidências

    Dos institutos de pesquisa aos consultórios, as peças do grande quebra-cabeça alimentar vão se juntando e somando evidências de que ajustes no horário de se alimentar são realmente bem-vindos. Um dos conselhos que emergem dos trabalhos da crononutrição é não deixar para almoçar ou jantar tarde demais. Se possível, adiante o rega-bofe!

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    Um estudo recente, realizado na França e na Espanha, constatou que indivíduos que costumavam fazer as primeiras e últimas refeições do dia mais tardiamente também eram aqueles mais sujeitos a ameaças ao coração.

    Os experts consideraram como “atrasadas” as pessoas que tomavam o desjejum após as 9 da manhã e deixavam para fazer a última boquinha depois das 9 da noite. Ao todo, foram avaliados mais de 100 mil cidadãos, acompanhados em uma iniciativa conhecida como NutriNet-Santé.

    As conclusões, divulgadas na prestigiada revista Nature Communications, revelam efeitos ainda mais significativos para as mulheres. Por outro lado, o jejum noturno mais duradouro — aquele período em que, devido ao sono, permanecemos sem comer de um dia para o outro — foi associado a menor risco de agravos vasculares e cerebrais.

    Empurrar o banquete noite adentro também pode levar a aumento da circunferência abdominal, acúmulo de gordura corporal e distúrbios metabólicos. É o que apontam investigações lideradas por uma equipe da UFU e publicadas em periódicos internacionais como o European Journal of Nutrition. Questão de timing mesmo!

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    “Há todo um trabalho do organismo para digerir os nutrientes e disponibilizá-los em suas formas mínimas para nossas células”, explica Cibele, uma das integrantes do time de estudos mineiro. “O problema é que esse processo de aproveitamento dos alimentos é prejudicado no período da noite”, completa.

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    Ora, a natureza é sábia: em tese, quando o Sol já se pôs, deveríamos estar nos preparando para o sono. A relação entre o momento de comer, o apetite, o gasto energético e os depósitos gordurosos também foi alvo de um experimento do Brigham and Women’s Hospital, em Boston, nos Estados Unidos.

    A pesquisa descobriu que se alimentar mais tarde impõe consequências indesejadas na liberação dos hormônios que regulam a fome e a saciedade. Os cientistas americanos examinaram 16 voluntários com índice de massa corporal (IMC) na faixa de sobrepeso ou obesidade.

    Os participantes seguiram dois protocolos: um com um horário de refeições rigorosamente programado para o início da manhã e o outro com exatamente as mesmas receitas, mas liberado cerca de quatro horas mais tarde.

    Em laboratório, os especialistas se debruçaram sobre um conjunto de informações extraídas dos pacientes, como temperatura, gasto calórico, relatos de fome, além de dados de amostras de sangue e de biópsias do tecido que armazena gordura.

    Após o teste de alimentação tardia, os participantes apresentaram queda nos níveis de leptina, hormônio responsável pela saciedade. Além disso, queimaram calorias em taxa mais lenta e mostraram tendência ao acúmulo de gordura. Ou seja, já existem fartos indícios de que postergar as refeições penaliza o ritmo biológico — e até o peso.

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    Dar as cordas no relógio

    O passo para qualquer mudança de estilo de vida é a criação do hábito. Seja começar uma atividade física, seja estabelecer horários para comer. A nutricionista Lara Natacci, da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), destaca que não há uma receita, ou melhor, horário ideal.

    Mas existem parâmetros que ajudam a balizar uma agenda que não deixe em segundo plano a saúde. “Tudo depende da hora em que a pessoa acorda e vai dormir”, afirma. “Um exemplo de uma rotina interessante seria tomar o café da manhã às 7 ou 8 horas, almoçar entre meio-dia e 1 hora, fazer um lanche leve às 3 da tarde e jantar lá pelas 7 da noite”, orienta a colunista de VEJA SAÚDE.

    Em busca de uma nova vida, mais afeita a comportamentos equilibrados, o químico Anderson Cazumba Vieira, de 36 anos, decidiu procurar auxílio profissional. A gastrite e as altas taxas de colesterol e triglicérides acenderam uma luz vermelha sobre a forma como o morador do Rio de Janeiro vinha organizando as próprias refeições.

    “Um dos aspectos que pioravam os sintomas estomacais era justamente permanecer longos períodos sem comer nada”, relata. “Almoçava por volta de 1 hora e só me alimentava novamente em casa a partir das 6. Como sentia bastante fome, me oferecia uma espécie de prêmio. Então comia besteira, tomava um vinho e o ciclo reiniciava”, detalha.

    Só que esse círculo vicioso passou a zonear o organismo do fluminense — e o corpo começou a dar sinais de alarme. Com a ajuda de uma nutricionista, Vieira conseguiu encaixar a alimentação na rotina de trabalho, diluindo a ingestão de nutrientes ao longo do dia. Os resultados já começaram a mostrar as caras.

    “Não sinto uma fome absurda nem vontade de comer bobagem à noite. Meu funcionamento intestinal está bem melhor e tenho bebido mais água”, conta o químico, aliviado.

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    Clique para ampliar (Foto: urfinguss/Getty Images | Design e ilustração: Laura Luduvig/Veja Saúde)

    De fato, boa parte dos deslizes alimentares ocorre na calada (ou na agitação) da noite. E isso é especialmente complicado porque a dieta e o sono caminham numa via de mão dupla, um influenciando o outro. “Pessoas que restringem o repouso noturno tendem a comer mais e a escolher opções consideradas menos saudáveis”, expõe a doutora em nutrição Marie-Pierre St-Onge, professora do Instituto de Nutrição Humana da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos.

    Em um estudo publicado no American Journal of Clinical Nutrition, o grupo da cientista americana desvendou que, ao dormirem menos, os indivíduos avaliados aumentaram o número de calorias ingeridas e pesaram a mão nos petiscos gordurosos.

    Nessa linha, outros trabalhos atestam que a privação de sono instiga as pessoas a devorar mais salgadinhos, bolachas recheadas e itens com alto teor de açúcar.

    Da mesma forma, nossos costumes à mesa influenciam o sossego noturno. “Em um de nossos estudos de intervenção clínica, demonstramos que os participantes que comeram mais fibras e menos gordura saturada nesse período passaram mais tempo em sono profundo”, conta Marie-Pierre.

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    Nessa mesma experiência, os voluntários que consumiram mais carboidratos refinados e fontes de açúcar encararam um maior número de microdespertares na madrugada — uma situação em que a pessoa não chega a acordar, mas não atinge um estágio reparador do sono. “Análises populacionais também mostram que padrões mais saudáveis, como a dieta mediterrânea, e a menor ingestão de produtos processados estão associados a um menor risco de insônia”, destaca a professora.

    Os impactos do menu no momento de contar carneirinhos são diretos e indiretos. É que alguns alimentos fornecem a matéria-prima para o corpo produzir substâncias como melatonina e serotonina, que regulam o ritmo circadiano. Fontes de triptofano (leite, ovos, castanhas…), por exemplo, são decisivas para ter esse estoque em alta, o que influencia o próprio ímpeto para adormecer.

    De acordo com Marie-Pierre, essa história também tem a ver com a microbiota intestinal e o eixo de comunicações entre o aparelho digestivo e o cérebro. Em resumo, uma flora equilibrada, fruto de um cardápio abastecido de alimentos mais frescos, naturais e fibrosos, ajuda a azeitar essa conexão com a cabeça, melhorando o estresse e o descanso.

    Embora não exista um elemento mágico no prato capaz de transformar a vida de quem sonha em dormir melhor, algumas medidas e ingredientes podem contribuir para uma noite de paz. “Minha recomendação é manter uma rotina alimentar. Isso significa comer dentro de algumas horas após acordar, manter horários de refeição consistentes e não comer tarde da noite”, ressalta Marie-Pierre.

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    A pesquisadora de Colúmbia prescreve botar mais frutas, verduras e grãos integrais no cardápio, e menos alimentos ultraprocessados ou ricos em carboidratos refinados (à base de farinha branca). E mais movimento, menos sedentarismo. “Esses comportamentos favorecem boas noites de sono, que ajudarão a manter os hábitos saudáveis”, justifica.

    Para quem se sentiu inspirado a resetar e mudar o estilo de vida atual, alguns recursos podem tornar o caminho mais fácil. “A crononutrição é baseada em três dimensões do comportamento alimentar: o tempo, a frequência e a regularidade. E todas elas estão relacionadas ao maior ou menor risco de desenvolver doenças ao longo dos anos”, afirma o médico nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).

    O primeiro passo é identificar seu cronotipo e priorizar horas adequadas de descanso noturno. Para isso, o teste de Horne e Östberg, disponibilizado na internet por instituições de pesquisa, é uma ferramenta útil. Em seguida, é essencial estabelecer uma faixa de horário para cada refeição, de acordo com as janelas de oportunidade ao longo do dia, considerando os afazeres no trabalho, na escola e em casa.

    Como regra geral, um dos principais conselhos é tentar adiantar o horário da boia, puxando especialmente o café da manhã e o jantar para mais cedo. O almoço, por sua vez, deve concentrar as principais calorias do dia, com itens nutritivos que serão responsáveis por garantir a energia necessária para manter o corpo em ação.

    Não é preciso comer necessariamente de três em três horas, mas a prudência manda evitar longos períodos de estômago vazio. É que o jejum pode inspirar ataques de gula e escolhas menos equilibradas depois.

    + Leia tambémJejum faz bem?

    Com o passar das horas do dia, os rangos seguintes devem ser fracionados, ou seja, convém reduzir gradualmente as quantidades de comida até o momento de ir para a cama. “Alguns hábitos pioram bastante o sono, comprometendo aspectos como a cognição e o bem-estar mental. Um deles é ingerir muita cafeína. O outro é comer demais à noite”, observa Lara.

    Por fim, mais do que criar e respeitar horários, é importante (e gostoso) dedicar esse tempo à comida em si, prestando atenção aos sabores, cheiros, texturas… Sem distrações! Afinal, alimentar-se com consciência, nutrindo e sentindo o corpo, é um dos preceitos mais apreciados pelo nosso relógio biológico.

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