“As pessoas que consomem chocolate são as que gozam de saúde mais constante, e as menos sujeitas a uma série de pequenos males que perturbam a felicidade da vida.” Entre descrições sensoriais e aspectos históricos, o francês Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), considerado o pai da gastronomia, chama a atenção para as benesses associadas à delícia em seu clássico A Fisiologia do Gosto, da Companhia das Letras (clique para comprar). Embora a constatação seja secular, as vantagens ganham força a cada dia, chanceladas pela ciência.
Uma das investigações mais recentes avalia os impactos do doce nos vasos que irrigam o coração, as coronárias, e foi publicada no periódico European Journal of Preventive Cardiology. Os estudiosos analisaram pesquisas das últimas cinco décadas, com um total de 336 289 participantes. Observou-se um elo entre o alimento e a diminuição do risco de doença arterial coronariana e, portanto, de perigos como o infarto. Para o médico Francisco Fonseca, da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), o trabalho confirma dados já colhidos anteriormente. “Como se trata de um estudo observacional, levanta hipóteses interessantes sobre os benefícios atrelados ao consumo de chocolate”, avalia o cardiologista.
E as pistas apontam para a ação de compostos antioxidantes encontrados na iguaria, vindos de sua matéria-prima, a semente do cacau. A lista de moléculas engloba o grupo dos polifenóis, especialmente flavonoides como catequinas, epicatequinas, quercetinas e antocianidinas, além dos taninos. Outra família que surge em abundância é a de metilxantinas, com destaque para a teobromina, promotora de bem-estar. Juntas, atuam em sinergia, intensificando os efeitos positivos. Evidências indicam que essa mistura estaria por trás de alguns processos capazes de fazer o coração bater feliz.
Para começar, a fórmula favorece maior liberação de óxido nítrico, substância reconhecida por melhorar a elasticidade dos vasos e afastar a pressão alta. “A literatura científica também mostra que esses componentes ajudam a reduzir a agregação de plaquetas, o que evita a formação de trombos e colabora para a circulação sanguínea”, conta a nutricionista Ludmila Novaes, do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo.
Há ainda um ingrediente inusitado no enredo: a gordura. Apesar de o alimento oferecer um tipo de ácido graxo saturado, o esteárico, no nosso organismo ele tem sua estrutura modificada por enzimas e, aí, se comporta como um monoinsaturado, o mesmo do azeite — ligado ao equilíbrio das taxas de colesterol. Não bastassem todos esses mecanismos, saborear um tablete desencadeia uma cascata de sensações agradáveis, que, indiscutivelmente, fazem bem até à cuca.
Theobroma significa “alimento dos deuses” e foi o nome escolhido para o cacaueiro. Olmecas, maias e astecas, que viveram na atual América Central e no México, já lhe atribuíam poderosos efeitos. Vem desses povos antigos a receita da bebida, batizada de xocolatl, feita com as amêndoas, água e outros ingredientes, caso da pimenta. Na nossa Amazônia, até os dias de hoje se elabora um líquido especial a partir de suas sementes, conhecido como “caldo da santa”. É costume servi-lo durante cerimônias religiosas, repletas de orações.
Levado por espanhóis para o outro lado do oceano, no século 16, o cacau conquistou a nobreza — e sua fama como revigorante se espalhou por vários países. E, sob a forma de tabletes, barras, bombons e afins, continua cultuado. A preferência mundial se deve a uma composição ímpar. Além das substâncias antioxidantes, já mencionadas, presenteia o corpo com compostos capazes de elevar a produção de endorfina, serotonina e dopamina. Esse trio de “inas” é um poço de bem-estar e responde pelo prazer que vem na sequência ao consumo. Entendeu por que em momentos de melancolia há quem devore uma caixa em segundos?
Para muita gente, a parcimônia é tarefa difícil em qualquer situação, na alegria e na tristeza. Afinal, a receita é de uma consistência inigualável: firme em temperatura ambiente, mas cremosa no calor da boca. Sem contar o sabor e o aroma — só a descrição já faz salivar. Daí por que é um desafio contentar-se com pouco. Exageros, entretanto, nunca são desejáveis, mesmo quando o alimento é carregado de qualidades, caso do chocolate.
“Uma das estratégias para evitar excessos é a prática de mindful eating”, comenta a nutricionista Valeria Arruda Machado, diretora executiva do Departamento de Nutrição da Socesp. Trata-se de uma técnica para comer com atenção plena, contemplando, agradecendo e percebendo texturas, gostos e cheiros. Há evidências de que a tática favoreça a autorregulação e ajude a equilibrar reações automáticas diante da comida, responsáveis por aquelas compulsões.
Ao degustar a próxima trufa, que tal evitar distrações e focar nas sensações que ela desperta, incluindo a de saciedade? Com parcimônia, todos podem apreciar, até mesmo quem tem diabetes. Basta que esteja em dia com o controle glicêmico e siga orientações dos profissionais que fazem seu acompanhamento. Inclusive, existem indícios de que as substâncias benfeitoras do chocolate, sobretudo os polifenóis, colaboram para o equilíbrio da glicose — uma revisão científica que desvenda essa atuação foi publicada na revista International Journal of Environmental Research and Public.
Diante da prateleira
Os tipos amargos são os mais recomendados porque concentram maior quantidade do fruto do cacaueiro. “O melhor é consumir as versões com pelo menos 70% de cacau”, sugere a médica Marcella Garcez Duarte, da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran). Aos que estranham, uma dica é educar o paladar gradualmente. Também é possível encaixar os tabletes ao leite no dia a dia, desde que seja com juízo. A nutricionista Maristela Strufaldi, da Sociedade Brasileira de Diabetes, ensina um macete: “Dá para saborear uma porção pequena, como sobremesa, depois de um prato com arroz, feijão, salada e um filé, por exemplo”. Maristela explica que as fibras e outros nutrientes vindos da refeição atenuam o impacto do açúcar presente no doce — isto é, a glicose cai na circulação mais lentamente. Xô, problemas!
Para evitar o ingrediente açucarado, há quem priorize os chocolates dietéticos. Só que muitos escondem armadilhas. É que a retirada da sacarose costuma levar junto o gosto e, daí, gordura extra é incorporada para suprir a falta de sabor e ainda dar textura ao produto. Por isso, verifique o rótulo.
Mas o ideal mesmo é entender que predileções não precisam ser ignoradas. Tanto que pesquisadores estão trabalhando para incrementar a formulação original da guloseima. Um grupo italiano acrescentou azeite de oliva e potencializou a ação antioxidante. Já estudiosos americanos escolheram o nosso amendoim e criaram tabletes com alto teor de fitoquímicos, mas com as características sensoriais e a suavidade do chocolate ao leite. Vanderli Marchiori, nutricionista e fitoterapeuta de São Paulo, aprova as misturas. “O amendoim traz ainda mais polifenóis”, nota. Combinações ainda geram perfumes, cores e sabores especiais.
O agrônomo Otoniel Ribeiro Duarte, chefe-geral da Embrapa Roraima, conta que certa vez estava de visita em uma área de igarapés da Floresta Amazônica, na região de Mucajaí, quando foi atacado por macacos que se refestelavam entre cacaueiros e ficaram bravos quando perceberam a presença humana. Os bichos lançavam os frutos. “Tive a impressão de que eles não queriam compartilhar o alimento com mais ninguém”, lembra.
Verdadeiros guardiões da natureza, os animais também se utilizam de métodos menos violentos para a preservação do cacau. Como costumam apreciar especialmente a polpa, desprezam as sementes por onde passam. “Assim, colaboram para a disseminação da espécie”, revela o pesquisador.
Graças aos maias e astecas, muita gente acredita que o berço do cacaueiro fica restrito à América Central e ao México, mas ele se originou em território extenso, que engloba, inclusive, a nossa Amazônia. A árvore pode alcançar 20 metros de altura, mas em condições de cultivo atinge, em média, de 3 a 5. Os frutos são como bagas, cilíndricas ou redondas, com cerca de 20 centímetros, que guardam de 30 a 40 amêndoas, recobertas com uma massa aquosa e ácida, com tons que variam do branco ao rosa.
No século 17, a espécie viajou para Ilhéus e Itabuna e, em meio a uma paisagem deslumbrante da Mata Atlântica, se adaptou e ganhou tempero baiano. Até o final dos anos 1980, o cultivo se deu a todo vapor e a prosperidade tomou conta do local (como mostra a obra do escritor Jorge Amado). Mas um fungo conhecido como vassoura-de-bruxa desembarcou por lá — dizem as más línguas que foi de forma criminosa —, dizimando as plantações.
Desde então, muita pesquisa tem sido conduzida para que possamos retornar aos primeiros lugares no ranking de produção mundial. Uma boa-nova é que, tanto na Amazônia quanto nas cidades baianas, a cacauicultura começa a ser marcada por práticas sustentáveis. O engenheiro-agrônomo Manfred Willy Müller, coordenador de pesquisa e inovação da Comissão Executiva de Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), conta que o plantio pode favorecer a recomposição de reservas florestais.
Tem cacau na floresta
“Embora a árvore não deva ser classificada como espécie típica de sombra, cresce bem sob copas frondosas”, comenta Müller. Daí que uma das práticas mais conhecidas é a chamada cabruca, em que o cultivo é feito em harmonia com plantas silvestres. Sobre as vantagens do sistema de sombreamento, vale ressaltar a proteção contra pragas, ventos, chuvas pesadas, sol intenso, sem contar a colaboração para a biodiversidade. Jatobás, castanheiras e ipês são boas parceiras.
Respeitar algumas regras de manejo, com o devido espaçamento para evitar competição de nutrientes e permitir a entrada de luz, é primordial. Pesquisadores da Embrapa e da Ceplac costumam montar oficinas para ensinar certos truques aos agricultores.
O chocolateiro Ernesto Neugebauer, da Danke, juntou o que há de ponta em tecnologia com conhecimentos ancestrais, tanto de sua família quanto de povos da Amazônia, região onde instalou uma fábrica sustentável. “O zelo com o plantio e com os primeiros passos do beneficiamento ajuda a extrair o que há de melhor do fruto”, defende.
Remete ao movimento global conhecido como bean to bar — traduzindo, “do grão à barra” — e reverbera o cuidado com cada uma das fases da produção até chegar ao delicioso resultado final. Para fechar com mais uma notícia fresca e gostosa, cresce a tendência de inserir ingredientes nativos às fórmulas, como açaí, cupuaçu e maracujá. É pura brasilidade — e mais uma lembrança do tanto de riqueza que (ainda) cresce em nosso quintal.
Em três versões
Entenda o que diferencia os principais tipos de chocolate
Amargo: Os de sabor mais intenso tendem a exibir a partir de 70% de cacau e detêm muito da riqueza do fruto. Versões meio amargas oferecem, em média, de 40 a 60%.
Branco: Há quem defenda que o doce nem deveria ser chamado de chocolate, já que não leva as sementes de cacau. É feito com a manteiga extraída do fruto misturada ao leite.
Ao leite: Na receita, criada na Europa, entra a manteiga de cacau e o leite em pó. O teor de cacau varia de 30 a 40%, daí que também possui sua dose de fitoquímicos protetores.
Receita turbinada
Certos ingredientes costumam ser adicionados aos tabletes e bombons:
Frutas: Da tradicional cereja passando pelas cítricas, a espécies nativas, como o cupuaçu, os frutos agregam compostos protetores e perfumes marcantes.
Oleaginosas: Avelã, amendoim, castanhas, nozes e afins casam perfeitamente com o doce. Ainda têm gorduras boas (apesar das calorias extras)
e outros nutrientes.
Ervas e especiarias: A menta e demais plantas imprimem um frescor. Já canela e pimenta são encontradas em receitas milenares e fascinam com o toque ardido.
Adoçantes: São recrutados em receitas sem açúcar e, às vezes, para dar textura. Não deixe de olhar o teor de gordura nesses produtos — pode ser elevado em alguns.
Como a magia acontece
Conheça algumas etapas que colaboram para dar sabor, aroma, consistência e brilho ao chocolate:
Colheita
A experiência ajuda o produtor a saber o tempo certinho de tirar o fruto do pé. Com seu facão, ele parte a casca dura sem danificar os caroços que são desprendidos da polpa.
Fermentação
É uma das fases mais importantes e leva uns seis dias. Leveduras e bactérias interagem com as amêndoas do cacau, colaborando para o gosto peculiar do chocolate.
Secagem
Nessa etapa, retira-se o excesso de umidade para evitar a formação de mofo nas sementes. Costuma ocorrer ao sol, mas pode ser realizada de maneira artificial em tempos de chuva.
Torrefação
Aqui, compostos voláteis indesejáveis, que interferem no sabor do alimento, são eliminados. Requer muito conhecimento técnico para o controle das temperaturas.
Moagem e prensagem
Retirada a casca das sementes, os processos seguintes separam a manteiga e a chamada torta, um tipo de massa de coloração escura que é a principal matéria-prima do chocolate.
Conchagem
Torta e manteiga de cacau, além de outros componentes, entram na concheadeira, máquina que auxilia a remover água, atenuar a acidez e promover a aeração do produto.
Temperagem
Essencial para consistência, brilho e validade, esse processo controla a temperatura e permite a formação de cristais responsáveis pela solidificação do doce.
Cacau no copo
Durante as etapas da fabricação do chocolate, destaca-se um pó que resulta da moagem das sementes do cacau. Já dá para imaginar que concentra uma variedade de compostos benéficos, certo? Pois pesquisadores resolveram usá-lo em um estudo, publicado no periódico Circulation Research. Eles comprovaram uma melhora no fluxo sanguíneo entre voluntários que consumiram uma bebida feita com o produto.
A nutricionista Ludmila Novaes, do InCor, sugere a troca dos achocolatados, que normalmente carregam excesso de açúcar, por esse tipo de ingrediente. Baiana, Ludmila costuma visitar fazendas de cacau no Vale do Jequiriçá e também indica o consumo de nibs, conforme costume local. “Esses pedacinhos da semente torrada concentram flavonoides e outros protetores”, justifica.