Ao pesquisar sobre a Doença de Chagas na internet, é comum encontrar a informação de que se trata de um problema provocado pelo protozoário Trypanosoma cruzi, e que esse micro-organismo é transmitido às pessoas por meio do mosquito conhecido como barbeiro. Pois está na hora de uma parte desse raciocínio passar por revisão. Embora o tal protozoário seja realmente o causador da enfermidade, hoje ele é passado adiante principalmente através do açaí contaminado – e só em menor proporção pela picada do inseto.
Atualmente, cerca de 70% dos casos de Chagas têm como pano de fundo o consumo de açaí contaminado. A descoberta é de um grupo de pesquisadores liderado pelo cardiologista Odilson Silvestre, professor na Universidade Federal do Acre (Ufac), e foi publicada no jornal científico Clinical Infectious Diseases.
Os cientistas fizeram uma revisão sobre casos de Chagas aguda transmitida via oral desde 1965. “Foi aí que percebemos que a doença mudou de cara”, resume Silvestre. “E é fundamental que os médicos saibam disso”, completa Miguel Morita, cardiologista da Quanta Diagnóstico por Imagem e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que também assina o artigo.
Ora, sabendo dessa relação, há maior chance de os médicos diagnosticarem a doença precocemente, o que é imprescindível para evitar graves consequências lá na frente.
Na fase aguda, seja por picada ou ingestão de alimentos contaminados, o protozoário instiga sintomas como febre, lesões na pele, mal-estar e talvez falta de ar. “Às vezes, parece uma doença viral”, compara Silvestre.
Se a Doença de Chagas não for detectada nesse momento, há um grande risco de o quadro se tornar crônico e ficar um tempão sem dar mais sintomas. “Só que depois de dez ou 15 anos, o sujeito desenvolve uma insuficiência cardíaca para a qual não há um tratamento específico”, explica Morita.
Qual o problema do açaí
Os pesquisadores especulam que a encrenca está associada ao modo de processamento do alimento, que, em geral, acontece à noite. Isso porque o mosquito barbeiro é atraído pela luz. Voando por ali, o inseto deposita suas fezes onde o açaí é manipulado ou até mesmo é macerado junto ao suco da fruta.
De acordo com Morita, há maneiras de evitar que essa iguaria brasileira vire um reduto de Trypanosoma cruzi. “Uma das medidas é realizar o branqueamento, que nada mais é do que uma técnica que esquenta o alimento a 80 °C. Em seguida, ele é esfriado. Isso mata o protozoário”, ensina.
O duro é saber quem de fato recorre a esse procedimento. De olho nisso, a necessidade de uma fiscalização rígida é urgente. Para ter mais segurança e não deixar de usufruir dos inúmeros benefícios desse rico alimento, compre açaí em locais de confiança. E prefira marcas com selo da vigilância sanitária, um sinal de que foi pasteurizado – isto é, passou pelo tal branqueamento.
Agora, uma ponderação: embora seja o mais comum, o açaí não é o único alimento capaz de carregar o protozoário. Em Santa Catarina, por exemplo, já houve surto de Doença de Chagas por causa do consumo de caldo de cana contaminado. “Nem sempre é fácil identificar a fonte exata da contaminação”, observa o professor da UFPR. Por isso é tão crucial não menosprezar os sintomas típicos da fase aguda.
“Precisamos fazer algo em termos de prevenção e tratamento. Porque essa é uma doença que, depois de instalada, não tem cura”, reforça Silvestre. “Tentamos tratar suas consequências”, acrescenta.
Coisa que, diga-se de passagem, não é tão simples. Para ter ideia, a insuficiência cardíaca ocasionada pelo quadro anos mais tarde pode ser tão grave a ponto de exigir um transplante cardíaco. “Para evitar isso, temos que agir agora”, conclui Morita.